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sexta-feira, abril 10, 2020

Duas crônicas recentes em torno destes tempos de isolamento


Em 8 de abril de 2020



Tempo de refazimento



Talvez seja necessário chegar-se aos 50 anos para se saber das mudanças que determinados fatos – ou feitos – nos ocasionam. Alguns nos fazem felizes, muito! Outros nos entristecem, muito! Mas esses tais são meros marcos inesquecíveis diante de outros que, ao seu modo e em seu momento, mudam os rumos das nossas vidas, modulam nossos caracteres ou, ainda, transformam nosso sonho.

Em algumas ocasiões, pensei que trocara de sonho, mas foi necessário viver mais anos para descobrir que não, que nosso sonho é um só, porém dividido em fases – ou facetas. Percebi que tão logo um sonho se realizava, um outro ocupava lugar e, de repente, dei-me conta de que não era um sonho a ocupar o lugar do que se fez, e sim uma outra meta que se anunciava, como numa corrida por revezamento.

Sim! O que pensava ser um sonho realizado era somente um atleta passando o bastão: aqueles primeiros 100 metros fizeram-se passado e a mão que tomava o bastão tinha pés velozes empenhados em não esmorecer. E outra mão aguarda aquela batuta para a casa dos 300 metros, antes de abrir possibilidades ao próximo e derradeiro.

Corrida a termo, vitória ou não, pódio ou não, medalha ou não – sob outra ótica, o dia seguinte é como mais um bastão, numa corrida de muitos milhares de bastões. Alguns deles são marcos de feitos, mas quase todos são etapas a se cumprir.

Sim! O mais importante não é o pódio, nem as medalhas. Importante mesmo é o preparo, o treino, a concentração, as lições ouvidas e assimiladas, a construção da pessoa como ser em lapidação, feito a pedra de brilho e dureza.

É, sim, na casa dos 50 anos que o ser se descobre pronto. Afinal, e à luz das métricas adotadas, a pessoa cinquentenária fecha a segunda geração de sua existência dita de meia-idade. Direi, apenas, maturidade, que abomino os eufemismos para mascarar etapas da vida, como se viver um pouco mais fosse um castigo.

Houve um tempo, lá numa infância longínqua, em que se tinha por velhas as pessoas aos 40 anos. Foi preciso uma década festiva – a dos anos 50 do século passado – para abrir o tempo das grandes transformações humanísticas, a década seguinte, a decisiva década dos 60. O rock ‘n roll e a bossa nova se consolidaram e coloriram de sons o mundo todo, veio a revolução sexual com o advento da pílula e moças e moços levantaram, literalmente, seus topetes, impondo-se em tons festivos tanto no que vestiam quanto no que pregavam, escancarando seus sonhos.

A comunicação se expandia quando o rádio e o cinema viviam suas primeiras décadas de constante presença pelo mundo, a televisão se oferecia sem timidez e as notícias de fatos ocorridos do outro lado do mundo circulavam facilmente pela atmosfera, encimadas pelo céu cujo mistério já se fazia desvirginado pelos satélites artificiais e, antes que a década passasse seu bastão aos anos 70, a Lua já não era mais a mesma, pois acolhera, sem reação, o pouso de uma nave e recebia as pegadas se seus primeiros invasores.

E este ano de 2020, já decorrido o primeiro meio século após a conquista do espaço sideral, atravessamos tempos de atos e ações contrárias à efervescência dos tempos do após-guerra. Recolhidos a nossas casas, evitando aproximações até mesmo com os nossos mais queridos, experimentamos atividades que, dizem, mudarão drasticamente nosso modus vivendi.

Talvez sim... Talvez voltemos às ruas, nos tempos vindouros – dizem que em poucos meses – com novos hábitos e afazeres. Talvez mais humanos. Talvez mais seguros.

Espero que desprovidos de medos e convencidos de que a vida pode, sim, ser mais simples do que a que tínhamos até há poucas semanas.


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Luiz de Aquino, da Academia Goiana de Letras.




Em 3 de abril de 2020



O ócio, a esta altura



Divirto-me com os amigos que me dão conta de seu quase desespero ante o dever de estarem em casa, cumprindo o isolamento imposto pelos riscos de se contrair essa doença “chinesa”. Cada qual tem um modo de reagir, de encher o tempo, de buscar afazeres para que as horas “passem depressa”. Muitos se dizem angustiados com esse ócio obrigatório e conseguem produzir peças cômicas ante as restrições da vida nestas últimas semanas, mas há os que se mostram criativos e inquietos. Estes, acho eu, sofrem menos.

Ou não sofrem. Afinal, fortalecer rotinas comuns, como procurar limpar com mais rigor espaços e móveis, estantes e armários são ações para os primeiros dias. Mais difícil é abrir caixas de há-muito fechadas com velhos papéis e objetos, vistoriá-los para uma seleção que nos induz a preservar o mínimo e desfazer-se do máximo possível.

Escolhi isso, mas somente no segundo dia. Por incrível sorte, ou coincidência, na primeira caixa encontrei um sem-fim de papéis que me trouxeram notícias de fatos vividos e feitos realizados de que não mais me lembrava. Desse volume, eliminei cerca de vinte por cento dos papéis, e regozijei-me com boa parte deles – recortes de jornais, velhos escritos não publicados, cartas e bilhetes, recados...

Na segunda uma relíquia: nada menos que 23 pequenos quadros – desenhos do artista Rossevelt de Oliveira – o Roos – que guardei desde a última mudança, há cinco anos. Separei-os para aplicá-los com zelo e carinho na parede, feito uma homenagem ao amigo que se foi há tempo ainda breve, deixando-me, ainda outras molduras que me impedem a tristeza, bem como muito de sua arte em capas de livros meus.

E leio muito. E discuto nas mídias sociais, e digo de amor e amigos nas redes, e arrumo estantes, e separo livros e leio – hoje mesmo, esta quinta-feira 2 de abril, abrirei mais um livro, o quinto destes vinte dias. Ah! E tenho também as alegrias no quintal: cuidar, meio desleixado, da gatinha visitante que pela segunda vez veio parir no meu quintal. Os quatro filhotes de agora nasceram no carnaval, há pouco mais de um mês, e totalizam sete com que nasceram no meu aniversário do ano passado.

Esta sexta-feira será dedicada em boa parte ao quintal, de novo. Quero cuidar de algumas plantas que exigem atenção, considerar a extensão do gramado e o plantio de novas espécies, bem como fazer algumas podas. De volta a casa, as estantes para cuidar, também – limpar e rearrumar, eliminar excedentes e observar os de que poderei dispor para doação, também.

E volto aos amigos desesperados. Tem o que se recusa a ficar em casa – para justificar suas saídas, ofereceu-se para fazer compras em supermercados, farmácias e feiras para os vizinhos. Tem a que se voltou para trabalhos artesanais como costura e bordado, restaurando roupas, como calças e vestidos, e ornamentando velhas blusas. Tem quem realize “lives” cantando e tocando e os que declamam poemas. E os que vemos nas janelas do Brasil inteiro, realizando um belo feito de relação com a vizinhança.

E, do lado mais triste, as famílias surpreendidas com pessoas contaminadas, com os que estão internados e os que não resistiram. Aos que perderam seus amados fica uma tristeza ainda maior que a comum, pois que velórios são impedidos – para que o vírus não se propague ainda mais – e os sepultamentos acontecem de modo sumário.

Menos para alguns moradores de Juruti, uma cidade a 1.580 km de Belém, no interior do Pará. Lá, o advogado Claudionam– faleceu e suspeitou-se do famigerado vírus que assola a humanidade. Mas após o sepultamento sem cerimônias saiu o resultado – a causa mortis não foi o Corona Vírus -  https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/04/02/corpo-de-advogado-e-retirado-de-tumulo-ao-testar-negativo-para-covid-19.htm.

A família, então, sentiu-se no direito de exumar o corpo e realizar o lamentado velório; logo após, procedeu ao sepultamento, com as honras que o extinto merecia.

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Luiz de Aquino, da Academia Goiana de Letras.


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