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sábado, maio 02, 2020

Evocadores do arbítrio


Evocadores do arbítrio


Uai! As massas de carrões e motos de luxo arquivaram seus uniformes de torcida, parece! Esta semana não foram às ruas para exigir o fim do isolamento, pregar intervenção militar e fechar o Congresso e os Tribunais. Bastou lembrar que a exigência por um “endurecimento de regime” é crime previsto na Constituição, informação essa seguida do pito pela inconveniência de se fazer comício diante dos portões de quartéis – e, mais ainda, que prevalecer-se da autoridade outorgada pelo Povo para usar o pórtico do Quartel General do Exército é um desrespeito à própria Força para recolherem seus “ideais exóticos”.

O capitão, desprovido de seus galões há mais de 30 anos, ostentando a condição de comandante-em-chefe não conseguiu se conter e decidiu se exibir. No resto daquele domingo, há oito dias, e certamente pela madrugada adentro, o bom senso acendeu uma pequenina lâmpada no cérebro do mais alto mandatário desta Nação e ele amanheceu numa segunda-feira com opiniões divergentes da que marcou seu malfadado discurso na tarde anterior.

Mas o hiperativo não se conteve. O sabor da vitória sobre o cargo de Mandetta – vitória de Pirro, diga-se – e a alegria de ter entronizado na Saúde um amigo de fé, um médico que se tornou empresário e depois consultor, no Ministério mais importante neste tempo de pandemia estimulou-o a tirar de cena outro auxiliar cuja popularidade, tal como a de Luiz Henrique, ofuscava-o na altíssima cota percentual de rejeição.

E assim, Sérgio Moro caiu.

Caiu do cargo, claro. E ao cair, saiu atirando e levou consigo o staff de seu gabinete e uma importantíssima peça-chave, o diretor geral da Polícia Federal. E Bolsonaro, que tinha em Moro, agora, não um fiel escudeiro (e, convenhamos, Moro se postou bem como um fiel Sancho Pança ao omitir-se diante de vários desarranjos do chefe), mas sim um vulto que crescia e o ofuscava. Tinha de se livrar dele – e o fez com o devido estardalhaço, rachando a força popular de que disponha.

Um autêntico tiro no pé para alguém que tanto gosta de armas!

Os três filhos portadores de cargos eletivos e vedetes de seu governo regozijaram-se. E o presidente, que sentiu sobre si a forte luz dos holofotes, aproveitou o ensejo para evidenciar mais um filho, o Zero-Quatro, rapazote sorridente e feliz e, segundo o próprio pai, um terrível pegador que sequer precisa sair do condomínio para entediar-se das conquistas.

E a claque atenta aos aboios, essa que se traja de verde-amarelo para tecer loas à ditadura, não apareceu mais. Algumas frustradas tentativas não surtiram efeitos. E os bonecos humanos embrulhados no Pavilhão Nacional trouxeram-me à memória os versos imortais de Castro Alves, no seu antológico Navio Negreiro:


Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança...
Tu que, da liberdade após a guerra, 
Foste hasteado dos heróis na lança 
Antes te houvessem roto na batalha, 
Que servires a um povo de mortalha!...


E concluo estas divagações sobre o momento nacional, triste ante os riscos da nefasta peste, ainda mais combalido pelas incessantes decepções que me traz o noticiário. E volto a emprestar-me de Castro Alves, agora os versos finais desse Canto VI de seu poema-libelo abolicionista:

Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga 

Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!

Andrada! arranca esse pendão dos ares!

Colombo! fecha a porta dos teus mares!



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Luiz de Aquino, da Academia Goiana de Letras

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