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domingo, maio 03, 2020

Nada de polícia...


Nada de polícia, nem um mísero apito
da segurança que fica na Praça dos Três Poderes”

A pobreza do vocabulário levou toda uma horda, milhões de pessoas de pouca leitura – ainda que alguns detendo boa parte da fortuna brasileira concentrada no pico da pirâmide social – a confundir “herói” com “mito”. Em boa parte, a culpa é da tevê, em especial dos jornalistas esportivos, que chamam de heróis um bom centroavante, um zagueiro oportunista que “confere” finalizações ou ainda um goleiro que impede o êxito dos adversários.

A História do Brasil nos dá conta de muitos heróis – pessoas que lutam por uma causa nobre, um objetivo em favor de sua comunidade, de sua nação. Vejamos uns poucos:

- Tiradentes, ao ser condenado à forca por seu papel na tentativa da Inconfidência Mineira, declarou: “Dez vidas eu tivesse, dez vidas eu daria”.

- À margem do Riacho Ipiranga, o Príncipe Regente Pedro de Alcântara proclamou: “Independência ou morte!”.

- Cândido Rondon, marechal, herói que levou a comunicação telegráfica aos sertões e às matas, contendo o ímpeto de um jovem tenente que apontava o fuzil contra um grupo de índios, determinou: “Morrer se preciso for; matar, nunca!”.

- “Deus poupou-me do sentimento do medo”, presidente Juscelino Kubitschek.

Esses foram, de fato, heróis. Porém, o presidente Jair Messias Bolsonaro bradou: “E daí?”, consagrando-se como Macunaíma, o herói sem nenhum caráter.

Mas esses jornalistas, como os “ativistas” ou “militantes” da claque de Bolsonaro, não sabem nada de heróis. São como membros de “torcidas organizadas”, os primeiros por não disporem de um bom vocabulário (coisas que se consegue com muita leitura de obras boas) e os outros por não conhecerem de política como ciência social (coisa que se aprende também com muita leitura de obras boas).

Esses jornalistas de pouco alfabeto e grandes ambições, contemplados com remunerações astronômicas, em contraponto à paga que se dá aos repórteres de outras áreas do ofício, coincidentemente alinham-se com a militância que se embrulha na Bandeira do Brasil nas ruas – como se o nosso Pavilhão fosse o xale da vovó ou a capa de Robin, o menino-prodígio, o zero-dois do Batman.

Nos últimos dias de abril, um desses comentaristas esportivos também de pouca leitura – como os demais, ainda que um dos expoentes da TV Globo – censurou o craque Raí, um dos ícones da Copa do Tetra (1994), por ter criticado Bolsonaro. Esse jornalista, agora em função de cartola, devia se valer dos altos ganhos e tirar algumas horas diárias para a leitura – desde que orientada – para aprimorar-se como pessoa. Se assim o fizer, descobrirá que houve, sim, ditadura no Brasil e que foi sangrenta, censora, repressora e, ao contrário do que afirmam seus acólitos, corrupta. 

Saberá, também, que existe, sim, uma pandemia, um mal que assola toda a humanidade sensível e perceptiva – vasto segmento humano a que esse moço não pertence – e que, no Brasil, ao contrário do que tenta provar Jair Bolsonaro, já vitimou mais de seis mil pessoas. Raí traz a verve no DNA: é o irmão mais novo do saudoso Sócrates e aos pés de ambos Caio Ribeiro jamais chegou como jogador e, tudo indica, não chegará como cidadão.

* * *

Nada de polícia - Na praça dos Três Poderes, em Brasília, um grupo de profissionais da Saúde manifestava-se – silenciosamente e a distância segura, como dizem as regras de distanciamento social ante a pandemia – quando, súbito, surgiu um sujeito enorme, ou seja, de altura superior à mediana e largura física proporcional à sua grossura – melhor dizendo, sua nada fina educação. Aos berros, trajando o tradicional uniforme da “torcida canarinho”, xingava os manifestantes e cuspia em seus rostos, buscando reação para justificar a agressão física. Tratava-se, tal sujeito, de Renan Sena, conhecido pela brutalidade ostentada nas manifestações em torno da lenda, ou seja, o “mito”.

O Pavilhão Nacional ora é desfraldado, ora serve de capa e até mesmo de lenço ou guardanapo para limpar a baba ou os perdigotos. Foi então que surgiu aquela bonita jovem, pedalando sua bicicleta. Acenou para os manifestantes – parados e silentes, distantes entre si – demonstrando apoio e simpatia. Foi o que bastou para o troglodita bolsonariano acercar-se dela, aos gritos. A menina saltou da bike e partiu para cima do valentão, aplicando safanões e tapas.

Seguranças dos palácios do Planalto e da Justiça observavam de longe. Mais tarde, questionados, responderam que nada podiam fazer senão observar, pois sua missão era apenas “proteger o palácio”. A moça – identificada por um amigo como Sabrina Nery Maia – foi acudida pelos manifestantes pacíficos, que a afastaram antes que a tropa de choque do presidente, furiosa como uma “organizada” de futebol, a trucidasse.

“Gente, e minha amiga simplesmente não levou desaforo pra casa e partiu pra cima dos bolsominions safados (isso tudo porque os bolsominions estavam destratando os médicos que estavam fazendo protesto). Sabrina Nery que orgulho de você!”, registrou o amigo. No Instagram.

“Nós podemos ser heróis, nem que seja por um dia”, lembrou Kiko Nogueira, do DCM – Diário do Centro do Mundo (https://www.diariodocentrodomundo.com.br/salve-sabrina-nery-a-ciclista-que-encarou-os-fascistas-que-agrediram-enfermeiros-por-kiko-nogueira/). E acrescentou: “Sabrina, heroína por um dia — como o haitiano que foi à casa do inimigo dizer que ele não é mais presidente. Dada a repercussão das cenas nas redes, ela criou uma conta no Twitter. Explicou seu ato:

– Sou estudante de medicina, ele estava totalmente agressivo, batendo nos enfermeiros, que estavam no seu direito de manifestar”.

Sim: como já é sabido, grande parte das Polícias Militares de todo o país alinha-se cegamente com o “capitão” (entre aspas, já que ele não faz jus ao posto) e jamais aparece quando a balbúrdia é cometida pelos bolsominions, travestidos de bombons de merda e, como blasfêmia, embrulham-se no nosso glorioso “Pendão da Esperança, símbolo augusto da paz” (conforme Olavo Bilac).

* * * * *

Luiz de Aquino, da Academia Goiana de Letras.

2 comentários:

Rosy Cardoso disse...

Poeta querido este momento cavernoso que nos assola se faz glorioso em seu texto que alimenta o desejo de saber.Fico feliz diante do fechamento de sua crônica com esta corajosa estudante de medicina pela coragem de se defender e falar por todos pois a contemplação da maioria é a inércia, o medo, a cegueira ( mesmo que aos gritos)em estado de embriaguez.obrigada poeta!

Denise Godoy disse...

A postura do imbecil maior da extrema direita, dá nojo.A postura da Sabrina dá orgulho.