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quarta-feira, maio 13, 2020

A Poesia e a dor

Líliam Maial e eu

A Poesia e a dor

Luiz de Aquino

Bumba, o morro dos detritos

Estava no Rio de Janeiro há poucos meses, tinha dez ou onze anos. De Caldas Novas, trazia a lembrança de apenas uma grande cheia, quando o Córrego das Caldas avolumou-se e segurou em seu leito um automóvel que o atravessava... A ponte, de madeira, caíra uns dias antes e uma torrente inusitada, proveniente da retenção das águas por galhadas, fez parar o veículo. A família ocupante foi salva por uns ciganos acampados ali perto.

Ruas cheias, isso eu nunca vira. Afinal, a minha pequenina cidade estava, naquela época inteirinha na crista divisora das pequenas vertentes. E a rua cheia, para a minha descoberta, lá em Marechal Hermes, subúrbio da Central do Brasil, era a Jorge Schimidt, que cobre um pequeno caudal . Nunca entendi porque as prefeituras fazem ruas nas beiras dos córregos, canalizam-nos e depois os cobrem para que a Natureza, exigente, reclame seu espaço e dê vazão às tragédias.

Massa de lixo que virou usina de gás e chorume

Ando chorando demais, este ano. Minas e São Paulo, o Sul e Angra dos Reis, Nordeste e Baixada Fluminense, tanto Brasil mais sob a ação punitiva das chuvas e das cheias. Agora, a Belacap, como a chamávamos ao tempo de JK, é o alvo das ressacas do mar e do açoite das chuvas, ponto de convergência da quente umidade provinda da Amazônia e da massa fria que veio do Pólo Sul. Chuvas descomunais, ondas grandes e ameaçadoras, o chão encharcado, os morros de granito, a lama deslizante, o susto, a lágrima, a dor.

Agora, as chuvas molharam cenários da minha lembrança, chicoteando os ares e o chão, alagando tudo, obstruindo túneis e estradas, isolando bairros e praias, atravessando a grande ponte sobre a Baía de Guanabara. As águas tinham um acerto de contas com Niterói e redondezas. Dezenas de casas desmontadas e soterradas, vidas desaparecidas, sobreviventes e heróis apalermados, em choque.

Foi aí que veio a poesia, ou seja, a linguagem da alma humana. E veio de lá, do Rio de Janeiro, da lavra de poetisa Lilian Maial envia-me o seu pranto versejado:

Eu Tenho um Rio

eu tenho um rio que brota de dentro

e traz à tona o que foi sedimentar

tenho margens estreitas, correnteza furiosa

sem escolhas, apenas desaguar

invado e erodo, aliso cascalhos

até escorregar no limo do verbo

eu tenho um rio que leva as paredes

que se erguem em meio ao lixão da poesia

e soterra a palavra viva

eu tenho um rio de inundadas faces

e chovo poemas de sangue

eu tenho um Rio de Janeiro no peito estiado

e expio a falta da lembrança do teu rosto

Eu acabara de ver o noticiário, a lama preta no Morro do Bumba, em Niterói. Meus olhos já se habituaram às lágrimas ante a dor de tantos. Se já sentia aquele mal-estar que é a impotência ante o trágico, emocionou-me o poema de Lilian, e cuidei de lhe responder assim:

Lama e Lágrima

Brotava de mim um poema choroso,

de chuva de letras e lágrimas vírgulas.

Um veio de triste manchava meus olhos

à lama escura de um lixão esquecido.

Chorei plástico e lata, indefinido orgânico,

e fiz brotar o chorume na raiz das casas.

Eu não chorei um rio, mas o Rio de tantos

corações e janeiros, desde Sá e Araribóia.

Um rio de cá, o outro de lá e Itaipu.

Não era um céu, mas meus olhos; o verso,

um claro de lama e pedras sem verde.

E um rastro de sal na lama e na lágrima.

A bênção, Bumba (meu morro)!

Resgate: heroísmo e solidariedade

Ficam assim, nossos poemas, no modo que sugeriu Noel Rosa, em “feitio de oração”. Leiam-nos também, caso queiram, nesse endereço: http://recantodasletras.uol.com.br/duetos/2185711.

E queiram, ainda, emprestar seus gestos gentis de solidariedade, enviando o que for possível a cada um em auxílio às vítimas desse infortúnio.

Deus lhes pague!

Fale comigo: poetaluizdeaquino@gmail.com

15 comentários:

Mariana Galizi disse...

Já comentei no site que me indicou, mas "recomento": você é de uma sensibilidade acima da média.
Fiquei comovida com o que li de ambos poetas, assim como fico comovida com os acontecimentos em nosso Brasil. Temo a displiscência do poder público, não só do Rio de Janeiro, mas do nosso país.
Mas fico feliz em ver a comoção gerada em nós civis, que plantamos esperança, consciência e solidariedade.
Retomo, amo ler o verso dos seus olhos.

Pat Chanely disse...

Poeta, eu acabara de ler suas crônicas volta e meia permeadas de suas memórias cariocas, e ainda tinha no pensamento nossa última conversa sobre suas memórias nos tempos de garoto vivendo na cidade do Rio... Portanto, quando vi a tragédia na tv, vi que era aquele espaço de suas belas lembranças que estava sendo lambido pelas águas e engolido pelo lixo... Mas, eu pensei: "Ainda bem que a lembrança do poeta é indestrutível, pois está no seu verbo e no seu coração. Essa beleza do Rio, do teu rio de dentro, não se apagará"...

Abraços

Lila Boni disse...

Abraços ...

Bethânia Loureiro disse...

Luiz, ficou ótimo!!! Parabéns! Como havia te dito, é verdadeiramente um duelo de gigantes! rs
Tentei comentar, mas não encontrei como fazê-lo.
abraçosss






Bethânia Loureiro

Marluzis disse...

Querido poeta, tive o prazer de ler os poemas no site Recanto das Letras, a harmonia perfeita das letras de dois poetas de grande sensibilidade, que brincam seriamente com as palavras, nos emocionando com elementos reveladores. Trazem-nos o sentimento das perdas e dores e também reflexões.
Não quero me deter aos últimos acontecimentos calamitosos no estado do Rio de Janeiro, nem na minha cidade maravilhosa, que apesar dos pesares, será sempre maravilhosa.
Seres humanos, todos iguais perante Deus. Mas aqui neste planeta a diferença se faz presente.
Aqueles que detêm o poder de organizar e permitir o povoamento de grupos humanos se instalarem em lugares seguros para suas moradias, desconsideram os riscos e consequências catastróficas. Esses apenas se importam em poder serem lembrados em eleições, por ocasião de suas candidaturas. Aos poucos vão criando verdadeiros currais eleitorais, ignorando o respeito ao próximo.
O grito lírico de sua poesia revela nosso inconsciente triste e cansado, mas ao mesmo tempo nos alerta que a verdadeira missão dessa nossa passagem é amarmos uns aos outros.
A partir deste entendimento poderemos conquistar amor e respeito que nos é de direito e nos torna pessoas dignas. E aí sim, seremos iguais perante os homens, de preferência de boa vontade.
Acarinho vocês dois, que muito admiro.

Maria Luiza de Cravalho disse...

Luiz,
Querido mestre e poeta.
Precisamos destas palavras para suportar as dores de nosso quotidiano.
Você sempre consegue com seus poemas fazer florescer uma luz e da dura realidade nascer a esperança.
Transformar vidas, alimentar almas.
Por favor,não desista nunca.
Essa é a sua, a nossa missão!
Querida, Lilian Maial o seu pranto versejado: Eu Tenho um Rio.


Sem palavras.
Orações e ações inovadoras para as vitimas e familiares do nosso querido Rio de Janeiro.
Lutar por melhores dias de vida!
[Parabéns mais uma vez meus queridos poetas!].
Beijo de mel.
Malu Carvalho

Mara Narciso disse...

Insuportavelmente doloroso. Trágico, porém anunciado. Quando os morros já há dias derretiam, fomos noticiados dessa desgraça. Ficamos impressionados com o fato das autoridades não terem alertado essa população específica. Terrível, mas os versos estão inspiradíssimos, dos dois. Parabéns a ambos!

Linda Costa disse...

Luiz, Tomei a liberddade de colocar seu poema em "Poesia, pensamientos y Reflexíones", pois, acho lindos seus poemas e tenho vontade que todos conheçam.
En anexo te envio o primeiro recado que recebi lá. A poetisa Sonia é Venezuelana pelo jeito que respondeu acho que deve te conhecer, pena que lá só tem o primeiro nome, ou seja, não sei o sobrenome dela. Assim que receber mais recados te envio.

Beijos
Linda

Lílian Maial disse...

Querido Aquino,

Muito me envaidece estar em sua companhia nesse dueto. Vc é um poeta que só faz engrandecer qualquer poema.
Agradeço, ainda, aos amigos que comentaram e, de certa forma, abraçaram solidariamente a causa do nosso Rio de Janeiro, tão sofrido ultimamente.
Beijos,
Maial

Maria José Lindgren Alves disse...

Caro Luiz de Aquino
Uma beleza vocês dois!.
Vou tentar salvar o belo trabalho de você e da Lilian. Parabéns
Maria Lindgren

Luiza Chagas disse...

Luiz,
Que alquimia,
transformar o Rio
em poesia!
Nem uma gota na poça parava
todos os pingos de chuva escorriam!

bjs
Luiza

Maria Moreira disse...

Poeta, hoje aprendi vir aqui para ver um pouco de você e me encanto a cada leitura, Muito bom.
Nem sei como comentar, sei que me agrada.
Abraços, com carinho.

Luiz de Aquino disse...

O comentário abaixo, recebi-o de uma pessoa que indignou-se por que dizer que não gosto de Roberto Carlos, disse que sou mal-educado por isso. E demonstrou-me que ser bem educado é calar-se, não semonstrar gostos e desgotos. E escreveu:
"Boa tarde Luiz, vc tem toda razão, não somos obrigados a gostar da mesmas coisas, lembra de um dueto que vc fez com uma poeta amiga sua? Eu detestei, achei horrível de um pessímo gosto ,e por educação da minha parte eu não te disse nada, por que acho que sou educada. Mais sem brigas vc não gostou do RC e eu detestei aquelas poesias do dueto.
Bjos ".

Omito o nome porque ela não se manifestou sobre divulgar isso. Mas considero importante o registro de opinião contrária aos que enalteceram este dueto, pois é normal os descontentes manterem-se em silêncio (mas eu acho que os descontentes devem sempre manifestar-se.

L.deA.

Camila Senna disse...

Eu juro, juro que me arrepiei com tamanha sensibilidade de ambos retratando de uma forma tão especial e singela, a realidade de muitos aqui do Rio e Janeiro.

A conexão de vocês foi singular.
Mas uma vez aqui, no seu blog, me senti tocada!

Bj;*
Shalom.

Luiz de Aquino disse...

CRÔNICA PUBLICADA EM 9 DE ABRIL DE 2010. AO TENTAR RETIFICAR UM PEQUENO ERRO, NOTEI QUE TODA ELA FOI REMANEJADA PARA A DATA DE HOJE, 13 DE MAIO DE 202O.