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sábado, setembro 02, 2006

Espírito das cidades

“Eu amo a rua. Esse sentimento de natureza toda íntima
não vos seria revelado por mim se não julgasse,
e razões não tivesse para julgar, que este
amor assim absoluto e assim exagerado
é partilhado por todos vós”.

Paulo Barreto, o João do Rio, in A Rua.
.

Abro o “blogue” do meu amigo Osair Manassan e leio lá uma crônica excelente sobre o próprio autor, por si mesmo qualificado como um boêmio abstêmio e me delicio com a análise que faz dos boêmios bebuns e de si próprio. Concluo a leitura e permaneço sob o efeito dela, apreciando o efeito retardado tal como alguns animais de peçonha que, ainda que lhes arranquemos a cabeça, continuam se mexendo.


Isso se dá nos momentos especiais do amor de alcova com a pessoa mais querida, quando o prazer do colóquio se estende para além dos contatos. Fica na alma, mais que na mente, a nos lembrar que a alegria não se faz só de momentos, mas de sua continuidade. É assim a arte, a música, a poesia. Aliás, não me canso de chamar “poesia” a alma das artes: não basta saber dançar, há que se ter poesia; não basta escrever, há que se ter poesia; não basta pintar nem esculpir, muito menos tocar um instrumento, sempre há que se ter poesia.

Encontro-me com o velho amigo Paulo Bittencourt e ele, comentando nossos escritos (os meus, os dele e os de tantos que fazemos registros de fatos quotidianos das cidades), resume: “Penso, às vezes, que constituímos a alma das cidades”. Vejam que ele usou o singular: a alma das cidades. Sim, também acho que as cidades têm uma só alma. O que muda é a cor, ou o humor, de cada uma delas. Ou de cada esquina numa mesma cidade, ou de cada momento...

O fato é que vivemos essa alma urbana, tal como a alma dos campos desde que neles haja o homem (o homem, não o macho, mas o homem espécie). Engalanam nossos sentidos a cor das flores (ah, que é tempo de ipês floridos!), os tons de verde nas relvas e nas frondes, nas plantações dos grãos e do azul matizado de nuvens ralas ou mesclado de branco único, estampado de cinza-chumbo que prenuncia as chuvas.

Leio Ulisses Aesse e Vânia Lourenço, Leda Selma e Luiz Fernando Veríssimo, Ursulino Leão e Zé Mendonça, João Ubaldo e José Luiz Bittencourt (coincidentemente, pai do Paulo, que citei linhas acima) e viajo no tempo até Nelson Rodrigues, Adalgisa Néri e Sérgio Porto, José J. Veiga e Bernardo Élis. O que seria dos nossos jornais e das nossas almas urbanas sem as crônicas de cada dia?

E repito para mim o que deixei registrado num discurso (recepção a Leda Selma) na Academia Goiana de Letras: a boa crônica implica poesia. Porque é poética a alma das cidades, a alma dos dias, a alma dos nossos sentidos a perceber um tema. E, daí, posso afirmar: não se é, jamais, bom cronista sem que a poesia seja essência do escriba. Uma crônica sem a têmpera poética perde-se na alvura do papel, tal como um som de louça quebrada não é música.

Eis porque, paciente leitor, corro para aprender a cada dia, em cada leitura e em cada conversa, em cada encontro com amigos: quero, um dia, me sentir cronista, e não um mero escrevinhador de coisas avulsas. Enquanto não o consigo, por favor, continue paciente comigo. Prometo aprender.

2 comentários:

Osair de Sousa Manassan disse...

"Uma crônica sem a têmpera poética perde-se na alvura do papel, tal como um som de louça quebrada não é música".
No seu caso, Luiz, posso afirmar que a poesia está presente "acintosamente" em suas crônicas. Além da poesia, a crônica se torna um documento precioso dos comportamentos de uma sociedade num determinado tempo. Leio Machado de Assis e vejo um Rio de Janeiro que existiu, um Rio diferente do que conheço e me delicio com aquele tempo que, graças à crônica, posso vivenciar de um modo muito particular.
Um abraço, mestre Luiz.

Anônimo disse...

"Fica na alma, mais que na mente, a nos lembrar que a alegria não se faz só de momentos, mas de sua continuidade...
Poeta Luiz de Aquino, se seu amigo, colega e discípulo,rsrsrsrs!
Osair de Souza não se incomodar, faço minhas as palavras dele, pois ele disse tudo que poderia ser dito.

"Intelectuais, ma non troppo"

Luiz, quando lí essa crônica de seu discípulo, rsrsrs! Gostei da forma sincera e bem humorada, que ele usou para se auto qualificar, e adorei a maneira dele fazer uma análise de se mesmo e dos boêmios pé de cana, rsrsrs! osair nos deu
a oportunidade de conhece-lo, e conhecermos também um pouco dos boêmios pés de cana, rsrrs!! Mas ele só poderia ser assim mesmo,não
poderia ser diferente, já que ele
tem você por MESTRE!!!

Seu amigo Paulo Bittencourt, também está certo, " a alma das cidades são vocês, e é por isso que adoro ler crônicas, escritas por você e outros...Só que ler você eu gosto bem mais, rsrsrs!

Parabéns Luiz!
Beijo.
Lêida Gomes