Árvores da memória
Hoje, não apenas as noites do Centro Histórico são tristes: suas árvores também. Para os que teimam em doutrinar que tudo gira em torno do dinheiro, o fenômeno da decadência dos centros das grandes médias cidades brasileira deixa claro o equívoco: o fato de se transformarem as casas familiares em escritórios e lojas, ou de desapareceram para dar lugar a espigões comerciais condenou tais logradouros a um ambiente funéreo.
Curiosamente, recorre-se aos boêmios no afã de “revitalizar” os centros. Quem diria, hem? Tal como o violão (há um século, era símbolo de vagabundagem; na década de 1950, tornou-se símbolo da bossa-nova e da música dos bares da MPB), os boêmios de cinqüent’anos antes são os respeitáveis senhores grisalhos (ou carecas) a quem se recorre para dar aos velhos centros uma cor de vida e humanidade.
No Rio de Janeiro, revitaliza-se a Lapa, a Gamboa, a Cinelândia e outros referenciais de antanho (para “revitalizar” uma palavra que só ouvi, de viva voz, pronunciada pela vetusta Cora Coralina, numa tarde de posse na União Brasileira de Escritores); em Goiânia, o primeiro passo se deu na calçada do Grande Hotel, um dos prédios pioneiros da cidade, na década de 1930. Ali hospedaram-se Pablo Neruda, Monteiro Lobato, dizem que Getúlio Vargas (estranho: pensei que o Presidente da República seria hóspede oficial do Palácio das Esmeraldas; enfim...) e, segundo Genesco Bretas (in “Memórias de um botocudo”), foi morada de João Cabral de Melo Neto, lá pelos primeiros anos da década de 1940, quando o grande poeta pernambucano era funcionário do DASP (Genesco lecinou-lhe Inglês para o concurso do Itamarati).
Bem à porta do hotel, um flamboyant resiste. Suas raízes saltaram, enérgicas, da caixa de alvenaria que lhe protegeria; seu tronco forçou-se a uma bifurcação, tantos foram os cortes violentos que os homens da fiação elétrica lhe aplicaram que a solene árvore, das primeiras da nova capital, resume-se, hoje, a um horrendo V. Segundo li de Jesus de Aquino Jayme (“O Cometa de Halley”), sua fronde era abrigo de moços estudantes (hoje, veneráveis senhores de oito décadas). Certa vez, o maestro Jean Douliez (foi João Batista Zacariotti quem nominou, há mais de trinta anos, o grupo que inspirou meu talentoso parente a produzir o romance) lançou as mãos a um galho acessível; em seguida, tentou lançar as pernas, tinha o propósito da galgar a galhada. Mas não o conseguiu: do esforço resultou uma série de sonoros flatos, gaz de chope retido nos intestinos. Um dos rapazes não vacilou em dar à árvore um novo nome “científico”, em latim de improviso: “arbor flatulentis”.
Reverencio-me ante aquele flamboyant do Grande Hotel. Como a moreira da Rua 24, agora tombada, a cidade lhe deve loas e louvores. As flamejantes árvores de origem africana ambientaram-se bem no Planalto dos cerrados. Cilene Andrade, paulista que se enamorou de Goiânia-menina, encantou-se por chegar aqui em outubro e, num dos andares superiores do Grande Hotel, vislumbrar as flores cor de fogo que ornavam as avenidas centrais. E vistas do alto, tais árvores formavam alcatifa multicor. Faltava-lhe... Não, não faltava: naquela mesma noite, seu primeiro pouso em Goiânia, ganhou de Júlio Alencastro Veiga uma serenata inesquecível, infalivelmente encomendada pelo marido, José Andrade.
Duas árvores: a moreira serviu de gabinete ao ar livre ao interventor Pedro Ludovico, o construtor de Goiânia; o flamboyant do Grande Hotel, de referência à primeira juventude boêmia da cidade, bem como de adorno romântico a um jovem casal que tantos bons serviços prestou à cidade (Cilene Andrade foi vereadora e, ao lado do marido e dos filhos, representou a VASP em Goiânia por mais de quarenta anos).
Há outras, há outras... Algumas gameleiras, por exemplo; e outros flamboyants, alguns ipês e mais espécies nativas. A Prefeitura e a Câmara precisam, com urgência, levantas essas árvores e pontos de referências para possíveis tombamentos.
A memória de hoje agradece. E, tenho certeza, o futuro também.
5 comentários:
VOCÊ É UM HOMEM LETRADO POR NATUREZA. SUAS PALAVRAS ME PRENDEM AO TEXTO COESO E ME TRANSPORTA PARA UMA VIAGEM COMO SE ESTIVESSE PRESENTE COMO TESTEMUNHA DO QUE VOCÊ RETRATA TÃO BEM EM SUAS CRÔNICAS. PARABÉNS!!!
Querido Luiz, eu adoro flamboyants! Suas flores se parecem a orquídeas misturadas com a aurora. Mas, fico imaginando a situação da pobre árvore tendo que efetuar a fotossíntese daqueles gases... heheheh! Beijos - sua crônica está linda.
Oi Luiz
Gostei muito de "Árvores da Memória"! Assim se guarda a história de Goiânia, através de gente como você, cioso (e amoroso) de nossas peculiaridades, de nossas trajetórias, de nosso patrimônio...
Queria também dar-lhe os parabéns pelo lindo poeta-menino, que está seguindo as suas pegadas... Soube que ele fez o maior sucesso na festa dos lançamentos dos livros goianos. Um beijo para ele!
Mariza
Individualizar e nomear esses marcos naturais os faz ainda mais importantes, além de alertar pela preservação e o plantio de novas levas. Nem só as frutíferas têm gostosas sombras, histórias e suas graças. Boas descrições e lembranças das verdadeiras goianas de raiz.
Mara Narciso
Deixando um pouco os flamboyants para fazer uma referência a Cilene Andrade...Era filha de Tia Amélia, compositora, contemporânea e amiga de Ernesto Nazareth,ganhou uma composição de Altamiro Carrilho "Choro para Tia Amélia" é a segunda maior referência feminina no Choro, depois apenas de Chiquinha Gonzaga... Em Goiânia nenhum chorão toca músicas dela e são raros os que já ouviram falar dela... Tive o prazer de ser a última jornalista a entrevistá-la... Beijos!!!
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