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sexta-feira, janeiro 01, 2010

Uma crônica e um poema

Uma crônica, um poema

Encerro 2009 e inauguro 2010 com esta crônica, que busco enriquecer com um belíssimo poema de Lílian Maial, poetamiga.
Lílian e eu, 2009.


Visão do tempo

Luiz de Aquino

Antes eram os cartões, e abarrotávamos os correios de envelopes. “Boas Festas, Feliz Natal”, era o dístico dominante, com desenhos de sinos e guirlandas de ramos de pinheiro. Ou as figuras óbvias de um velho que saía e um bebê que entrava, ostentando faixas do ano que se findava e do período vindouro. Havia o hábito das saudações pessoais, como hoje, nos encontros eventuais de ruas, praças e comércio. E havia, também, as queixas: “Abandonou os amigos? Não recebi seu cartão de Natal”.

Nos meados da década de 1970, desisti de enviar cartões. O custo não era tão pequeno para um assalariado. Bancário recebia em dia, mas era mal remunerado (era?). Sobre isso, vale a frase do Edivaldo, comentando minha crônica da semana passada: “Éramos felizes e não sabíamos”. Era assim, sim. (Na crônica anterior, memorei, como agora, tempos de trinta e poucos anos atrás, dos natais bucólicos. Era antes dos xópins e dos computadores.

Em tempo de Internet, ainda há quem use os correios para comunicação tão prosaica, de modo poético. Ao computador, realizamos pelo menos 90% das relações de amizade e até mesmo profissional. Sair de casa, hoje, só por poucas razões, pois a máquina serve para baratear o custo de muitas ações corriqueiras. O telefone, aos poucos, vai desaparecendo. São muitas as mensagens datadas, especialmente nesta semana alongada que engloba Natal e Ano-Novo (ainda tem hífen?). Alguns amigos chegam a repetir até cinco ou seis vezes as saudações de fim de ano. Claro, tudo é muito bem-vindo!

E aí, vejo que predomina o velho hábito de se avaliar o ano findo e listar projetos e sonhos para os doze meses a vir. Muito prática, Rosana, minha amiga fazendeira, resume: “Fim de ano, para mim, é como fim de mês”. Certíssima, ela! O “reveion” há de ser uma grande festa, com fogos e bebida espumante, roupa nova e muita alegria. Gostamos de tudo isso – festa, fatiota (essa é antiga, hem?), cores, músicas, abraços e, se for o caso, um novo amor (ninguém é de ferro; ou: não nascemos para a solidão).

Preocupa-me a saúde da Haydée – minha sogra luta pela vida, a menos de um mês de seus setenta e oito aninhos. Festejo o verde dos campos e dos jardins, namoro as cores das flores. Curto a boca do poço a lembrar ilustrações de contos de fadas. Não escrevi novos poemas em dezembro, não parei para o cinema, apenas curti canções já ouvidas e revivo, na memória, amores idos, porque a vida se faz de sonhos, mas sem desmerecer as lembranças. O presente é presente de Natal, de aniversário... Ou por alguma coisa realizada que justifique o merecimento.

Festejo novas amizades, e alegro-me também ante as que se acabaram porque não valeram. Faço orações pelos vivos e envio energias aos que se foram. Mando sorrisos ao catador de papel que enfeita de cores seu carro de coleta; à distância, para não haver confronto, xingo o (a) motorista que abusa no trânsito, sonho acordado com a volta à paz nas ruas e com a inalcançável, ainda, justiça social em que ninguém precisará roubar para comer e, assim, não pôr sob ameaça a dignidade do próximo.

Prometo-me não mais ver telejornais: não gosto da têmpera que norteou a guerra judicial pelo menino Sean (dizem Xã e até mesmo Xon), e muito menos da omissão nacional ante o conflito brasileiro-surinamês da noite do Natal, com muitas tentativas e um assassinato, muitos estupros e facadas. Notem que, nos dois casos, envolvendo ambientes sociais tão díspares, a causa é a mesma: migração internacional, invasão de espaços, choques culturais... Tudo por conta de se obter dinheiro pelo que parece ser a via mais fácil, segundo cada um.

Acho que é esse o meu único plano: evitar más notícias. Aliás, evitar saber delas, já que continuarão acontecendo amanhã como ontem, aqui como acolá. Que Maria Luiza continue poetizando em texto e atos, que Wanda continue sorrindo, que os meus continuem felizes, como felizes quero que estejam todos, principalmente os meus desafetos: se estes estiverem alegres, não terão motivos para desejar-me o mal. Amém!

Luiz de Aquino é jornalista e escritor, membro da Academia Goiana de Letras. E-mail: poetaluizdeaquino@gmail.com

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Nasce 2010
Lílian Maial *


O dia esboça as primeiras contrações.
Em trabalho de parto
rompe a manhã
desce a água
chove.

Pelo estreito espaço
canal do tempo
avança o fruto do encontro
do ontem com o amanhã.

A saudade aperta.
Dói.
O peito agüenta
num hercúleo esforço
para recebê-lo bem.

Mais perto
os olhos se voltam em alegria
e, então, sob grande expectativa,
nasce o novo ano
a plenos pulmões
gritando ao mundo seu destino
sorrindo para os homens
de boa vontade.
* * *

* Lílian Maial é médica e poetisa carioca: www.lilianmaial.com

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11 comentários:

Mara Narciso disse...

Um poema com muita força, como é o esforço de um parto normal. Belo. Parabéns a sua amiga.

Sobre a sua parte, amigo Luiz, vejo com ótimos olhos os seus desejos, e destaco: " porque a vida se faz de sonhos, mas sem desmerecer as lembranças." Sim, não devemos menosprezar os amores, só pelo fato de serem passado. Passamos muito bem neles, e não há motivo para esquecê-los. Aos que nunca mais quero ver, espero que estejam bem, pois não custa nada evitar maus agouros.

Lílian Maial disse...

Delícia de crônica, Aquino! Muito boa sua avaliação quanto àmídia supervalorizar o caso Sean e "esquecer" do conflito na fronteira com o Suriname.
Mais delícia, ainda, encontrar essa maravilhosa surpresa de um poema meu logo no primeiro dia do ano! Vc é um amor, querido! Obrigada pelo carinho. Um ano cheio de inspiração pra vc. E melhoras para a sogra. Beijo, Maial.

Madalena Barranco disse...

Bela crônica de passagem de ano! Luiz, querido, o bom de tudo isso é que de certa forma renovamos a esperança e traçamos projetos para mais doze meses. Adorei a poesia da Lilian!!

Beijos de feliz ano novo e espero que sua sogra fique boa logo.
Com carinho, Madalena

anasamyn disse...

Gostei meu amigo, lembrei-me desses tempos, filas longas nos correios....Graças a Deus pela tecnologia de que agora dispomos!
Beijos com carinho e um feliz 2010.

Maria Luiza Carvalho disse...

Primeira tarde de 2010. Recebo em casa duas amigas que conheci em situações complicadas num ambiente de trabalho em que quase tudo convergia para o aniquilamento do ser humano e dos vínculos afetivos. Não obstante o terreno árido e hostil (e talvez até mesmo por causa dele), alguns de nós ousamos cultivar ali algumas sementes de solidariedade, doação, voluntarismo e altruísmo que hoje culminam nos frutos de uma verdadeira amizade e respeito mútuo.
Pois bem... Estamos as três aqui lendo sua crônica escrita por ocasião do Ano Novo e, neste fato, como em todos os outros que marcam e marcaram nossa amizade (os vários gestos abnegados, os telefonemas educados, os e-mails carinhosos, enfim, a troca sempre consumada com gentileza e amabilidade), estão presentes aqueles versos de Vinícius de Moraes no Samba da Bênção: “A vida é a arte dos encontros / Embora haja tantos desencontros pela vida”.
Amigo poeta, como nos tocam suas palavras e sua arte de relacionar o individual com o social... Percebemos que seu texto fala de dois planos: aquele em que há o apagamento das coisas essenciais e em que o vínculo das pessoas com a realidade é quebrado, o que pode ocorrer pela interferência alienante tanto da mídia quanto do aparelho ideológico do Estado; e aquele plano em que os laços entre as pessoas são construídos pela autenticidade de afetos e sentimentos. Na maioria das vezes, esquecemo-nos de olhar o outro de modo pleno. Daí muitos de nós acharmos natural o fato de aqueles brasileiros pobres e rotos atacados no Suriname não terem nomes nem família, e os considerarmos mais distantes de nós que o menino filho do americano rico e de boa aparência. Seu gesto de nominar, em sua crônica, seus parentes e amigos, nos acorda para essa necessidade de considerar e respeitar o outro em sua individualidade e concretude.
Nas belas palavras da poeta Lílian Maial, fica patente o conflito entre o velho e o novo, entre o passado e o futuro, que gera a vida. Esta experiência que ora vivemos, de nascimento do novo ano, é marcada por essa saudade que aperta e dói. Então, é preciso que escutemos a nossa voz interna e lidemos da forma mais equilibrada com essas emoções. Ou seja, ainda com a poeta, neste momento, é preciso que o peito agüente o “esforço hercúleo” para receber da melhor forma possível esse tempo ainda menino. Uma das coisas que podemos fazer nesse sentido é, como na letra “A lista”, de Oswaldo Montenegro, um balanço de nossos afetos: “Faça uma lista de grandes amigos / Quem você mais via há dez anos atrás / Quantos você ainda vê todo dia / Quantos você já não encontra mais... / Faça uma lista dos sonhos que tinha / Quantos você desistiu de sonhar! / Quantos amores jurados pra sempre / Quantos você conseguiu preservar... Nesse momento, lembramos também de Milton Nascimento, em Canção da América: “amigo é coisa para se guardar do lado esquerdo do peito, / mesmo que o tempo e a distância digam não”. Precisamos lembrar muitos gestos são verdadeiras “doações” que deixam lembranças significativas. Enfim, existem pessoas que passam e outras que ficam.
Que em 2010, as pessoas possam prestar mais atenção para esse plano essencial da vida. Afinal, “quando a gente ama é claro que a gente cuida”...
Afetivamente,

Maria Luiza Carvalho, Roseli Araújo e Patrícia Chanely

Tânia Cabral disse...

Li suas crônicas "Era Natal" e "Visão do tempo". Como sempre, a par da sociedade, dos temas focalizados, os quais sabe muito bem desenvolvê-los de forma que nos prende ao texto. Percebe-se ainda aquela nota pitoresca, plena de lirismo, como que, objetivando suavisar as asperezas da paisagem humana, com seus vícios e defeitos. Além de inserir em seus relatos exemplos de vida que serve, na maioria das vezes, como exemplo de conduta e dignidade, respeito e honestidade, solidariedade e consciência, amor e fraternidade... Partindo sempre do mesmo princípio, tendo entretanto, formas de vida e responsabilidades diferentes.

Bom feriado para ti!

Tânia Cabral

Lucia Lazaro disse...

Luiz: Maravilhoso Ano Novo. Q s/crônicas continuem a nos proporcionar cultura, alegria e mto,mas mto otimismo.. Precisamos disso. Abrçs e obrgda pelas pérolas que já acumulei .

Shamina disse...

"... Festejo o verde dos campos e dos jardins, namoro as cores das flores..."

Que lindo! Sou uma das muitas amigas de Malu e fique especialmente "tocada" por essa frase... Ando precisando tanto festejar o verde e namorar as cores... Em 2010 decidi que vou "ser iniciada" na arte da pintura... E estou amando essa decisão!

Parabéns pela crônica... Reavivou o verde do meu coração que andava tão desbotado...

Abraços e feliz 2010!

Wanda disse...

Haydée se foi. Já deve estar alegrando o povo de lá. Acompanhei de pertinho a sua dor, poeta querido, e doeu em mim vê-la em seus entes queridos. Mas o céu estava desanimado e ela foi cantar e dançar e reencontrar os amigos. E, cá pra nós, ela estava sofrendo. Hospital não combina com ela, não é?
Você, como sempre, escreve com uma clareza e sensibilidade que tocam profundamente o meu coração. E leio e releio sua crônica saboreando as palavras que fluem tão facilmente em você. E, confesso, espero ansiosamente pelos seus escritos.
Festejo também o verde, as flores, o poço cheio de charme no seu quintal e vislumbro já o cantinho que irá construir. Mas o que mais me alegra é saber que posso contar com sua presença em minha vida. E, desde sempre, conte com a minha e com o meu sorriso. Ah, e obrigada por mencionar-me em sua crônica.
Muito belo o poema da Lílian.
Que Jesus te abençoe sempre.
Beijos!

Elder Rocha Lima disse...

Poeta: Sou, confesso, invejoso e paradoxal - invejo e me rejubilo com o
talento dos amigos. Sua crônica de hoje estava um caso sério - o Rubem Braga,
meu santo padroeiro, iria, com certeza afirmar: "é do ramo, é do ramo!"

Recado do Elde

Angella disse...

Ótima crônica... trazem algumas lembranças que sempre serão revividas.