A nível de...
Bastaram-me vinte minutos de um programa jornalístico para ouvir uma série infindável de atentados contra a língua portuguesa. A primeira delas, a famosíssima “a nível de”, que muitos neomandatários de cargos públicos, eleitos ou nomeados, usam a bel-prazer. Coitados, nem percebem que a expressão é totalmente dispensável. Eles dizem: “Assim que constatarmos a irregularidade, a Sema a nível municipal será informada”. Bastaria informar “a Sema municipal” (pressupondo-se existir a Sema estadual).
A título de curiosidade: há mais de dez anos o nosso José J. Veiga, escritor goiano muito mais lido, respeitado e admirado em qualquer lugar do Brasil que não seja Goiás, levantou a lebre e o caso foi divulgado por uma das duas maiores revistas semanais (Veja ou IstoÉ); a palavra “nível” pede a preposição “em” – a isto se chama regência – e não “a”. Portanto, o correto seria dizer “em nível de”, mas qualquer frase prescinde da expressão, que além de desnecessária resulta em empobrecimento de estilo e de um pedantismo... brega.
Brega também é o entrevistado que, influenciado por jargões acadêmicos (estranhamente, boa parte das incorreções de linguagem vem dos meios universitários), começa sua resposta a qualquer pergunta com um antipático “veja bem”. Quando não é isso, um adereço linguístico dos mais pernósticos está na adaptação semântica inadequada: “O professor, enquanto ser humano...” é uma frase que nos deixa a pensar: se ele é ser humano dentro de uma condição, o que ele é em definitivo?
Outra: a palavra “onde”, que sempre foi um advérbio de lugar, passou, nos últimos anos, a ser usada como advérbio de tempo em construções do tipo “houve uma reunião onde ficou decidido...”. Aliás, confusões entre tempo e espaço transformam história em geografia e vice-versa, como “a festa programada para a noite de hoje foi transferida para a próxima quarta-feira”. No que me consta, esse evento foi adiado, e não transferido, pois transferir implica mudança de lugar, não de tempo.
Nesses vinte minutos de audiência, por volta das sete e meia da manhã, os disparates não vieram só de entrevistados, os repórteres são os que mais cometem agressões contra a língua. Isso é fácil de entender: estudantes dos cursos de comunicação refutam solenemente qualquer ensinamento de língua portuguesa pois, entendem eles, desde que passaram no vestibular, são donos da comunicação. E comunicação é, basicamente, falar e escrever. “A maioria dos casos foram constatados” bem juntos com “foi mandado livros a mais”.
Nos anos de 1980, uma propaganda do BEG (Banco do Estado de Goiás) dizia: “É nos piores momentos que se conhece os melhores papéis”. Briguei muito para consertar a concordância, mas publicitário é outro tipo de profissional que distorce a língua oficial como bem entende; e como o cliente não é letrado, a coisa vai... Agora, é a cerveja que desce redondo. Redondo, neste caso, virou advérbio de modo.
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Crônica publicada aqui no DM em abril de 2001; integra meu novo livro – Ah, língua brasileira! – a sair na coleção Goiânia em Prosa e Verso, da Secretaria da Cultura / Prefeitura de Goiânia. L.de A.
4 comentários:
Bom dia, meu amigo Luiz!
Solidarizo-me com a sua angústia diante das abomináveis distorções da língua-mãe (que acaba virando uma língua filha-da-mãe, de tão conspurcada). O "onde" é uma luta minha em sala de aula, entre tantas outras lutas, quase sempre previamente perdidas.
Gostei muito da alfinetada "José J. Veiga, escritor goiano muito mais lido, respeitado e admirado em qualquer lugar do Brasil que não seja Goiás", é o santo de casa que não faz milagre nem que a vaca tussa.
Mesmo tendo 10 anos, sua crônica, infelizmente, continua atualíssima. Para piorar, agora os erros são cometidos sob as bênçãos do MEC.
Um abraço.
Que postagem oportuna essa sua! É tanto erro, tanto atentado contra nossa querida e amada língua, que eu já parei de ver noticiário. Que faculdade é essa frequentada por jornalistas? Parabéns por abordar tema tão atual.
Luiz, é bom ir cutucando a burrice nossa de todos os dias, para ver se aprendemos e melhoramos um pouco. É preciso evitar ferir os olhos e a sensibilidade alheios. Mil revisões se preciso for, para reduzir essas agressões.
Adorei Luiz!!
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