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sexta-feira, julho 15, 2011

A nível de...


A nível de...



Bastaram-me vinte minutos de um programa jornalístico para ouvir uma série infindável de atentados contra a língua portuguesa. A primeira delas, a famosíssima “a nível de”, que muitos neomandatários de cargos públicos, eleitos ou nomeados, usam a bel-prazer. Coitados, nem percebem que a expressão é totalmente dispensável. Eles dizem: “Assim que constatarmos a irregularidade, a Sema a nível municipal será informada”. Bastaria informar “a Sema municipal” (pressupondo-se existir a Sema estadual).

A título de curiosidade: há mais de dez anos o nosso José J. Veiga, escritor goiano muito mais lido, respeitado e admirado em qualquer lugar do Brasil que não seja Goiás, levantou a lebre e o caso foi divulgado por uma das duas maiores revistas semanais (Veja ou IstoÉ); a palavra “nível” pede a preposição “em” – a isto se chama regência – e não “a”. Portanto, o correto seria dizer “em nível de”, mas qualquer frase prescinde da expressão, que além de desnecessária resulta em empobrecimento de estilo e de um pedantismo... brega.

Brega também é o entrevistado que, influenciado por jargões acadêmicos (estranhamente, boa parte das incorreções de linguagem vem dos meios universitários), começa sua resposta a qualquer pergunta com um antipático “veja bem”. Quando não é isso, um adereço linguístico dos mais pernósticos está na adaptação semântica inadequada: “O professor, enquanto ser humano...” é uma frase que nos deixa a pensar: se ele é ser humano dentro de uma condição, o que ele é em definitivo?

Outra: a palavra “onde”, que sempre foi um advérbio de lugar, passou, nos últimos anos, a ser usada como advérbio de tempo em construções do tipo “houve uma reunião onde ficou decidido...”. Aliás, confusões entre tempo e espaço transformam história em geografia e vice-versa, como “a festa programada para a noite de hoje foi transferida para a próxima quarta-feira”. No que me consta, esse evento foi adiado, e não transferido, pois transferir implica mudança de lugar, não de tempo.

Nesses vinte minutos de audiência, por volta das sete e meia da manhã, os disparates não vieram só de entrevistados, os repórteres são os que mais cometem agressões contra a língua. Isso é fácil de entender: estudantes dos cursos de comunicação refutam solenemente qualquer ensinamento de língua portuguesa pois, entendem eles, desde que passaram no vestibular, são donos da comunicação. E comunicação é, basicamente, falar e escrever. “A maioria dos casos foram constatados” bem juntos com “foi mandado livros a mais”.

Nos anos de 1980, uma propaganda do BEG (Banco do Estado de Goiás) dizia: “É nos piores momentos que se conhece os melhores papéis”. Briguei muito para consertar a concordância, mas publicitário é outro tipo de profissional que distorce a língua oficial como bem entende; e como o cliente não é letrado, a coisa vai... Agora, é a cerveja que desce redondo. Redondo, neste caso, virou advérbio de modo.


* * *


Crônica publicada aqui no DM em abril de 2001; integra meu novo livro – Ah, língua brasileira! – a sair na coleção Goiânia em Prosa e Verso, da Secretaria da Cultura / Prefeitura de Goiânia. L.de A.

4 comentários:

Cliff Seward disse...

Bom dia, meu amigo Luiz!
Solidarizo-me com a sua angústia diante das abomináveis distorções da língua-mãe (que acaba virando uma língua filha-da-mãe, de tão conspurcada). O "onde" é uma luta minha em sala de aula, entre tantas outras lutas, quase sempre previamente perdidas.
Gostei muito da alfinetada "José J. Veiga, escritor goiano muito mais lido, respeitado e admirado em qualquer lugar do Brasil que não seja Goiás", é o santo de casa que não faz milagre nem que a vaca tussa.
Mesmo tendo 10 anos, sua crônica, infelizmente, continua atualíssima. Para piorar, agora os erros são cometidos sob as bênçãos do MEC.
Um abraço.

disse...

Que postagem oportuna essa sua! É tanto erro, tanto atentado contra nossa querida e amada língua, que eu já parei de ver noticiário. Que faculdade é essa frequentada por jornalistas? Parabéns por abordar tema tão atual.

Mara Narciso disse...

Luiz, é bom ir cutucando a burrice nossa de todos os dias, para ver se aprendemos e melhoramos um pouco. É preciso evitar ferir os olhos e a sensibilidade alheios. Mil revisões se preciso for, para reduzir essas agressões.

Bethânia Loureiro disse...

Adorei Luiz!!