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Bariani entregou-me a Medalha Jaime Câmara, do Conselho Estadual de Cultura (1999); Lucas, com 4 anos, toou-a para si. |
A mão que estendo
De alguns meses até este
alvorecer de dezembro – crepúsculo dos anos – venho realizando entrevistas com
os membros da Academia Goiana de Letras, meus confrades escribas e amantes das
letras, para a memória do Centro Cultural Oscar Niemeyer. São poetas, cronistas
e contistas, romancistas e ensaístas de Letras, Filosofia, dos meandros
jurídicos e até mesmo das Ciências médicas. Somos um grupo limitado, apenas 40
membros, quase todos provectos e uns raros que ainda ostentam peles jovens e cabeças
aptas a incontáveis mudanças.
Há um texto belíssimo de
Vinícius de Morais em que o Poetinha discorre ante as possibilidades de perder
todos os amores ou perder todos os amigos – e conclui que pior seria perder
amigos. De meses para cá, tenho dito que tão importante e prazeroso é fazer
novos amigos quanto descartarmo-nos dos que não correspondem… Sim: não se trata de criar expectativas
ideais, mas de aceitar os amigos tal como são, e descobrir que entregamos amor
sem receber em troca: amizade é
uma avenida com mão e contramão.
Essa via de ida e volta tem
sido, para tantos ou todos de nós, como o mais valioso dos caminhos. Sempre me
regozijei pelas amizades conquistadas e sofria muito ao sentir que perdia
alguém; até descobrir – e foi na via do amor romântico que descobri – que
perder é tão importante quanto ganhar. Perdas múltiplas, numa vida inteira, não
conseguem, porém, esvaziar o balde da nossa colheita; sempre teremos mais
amigos do que os rostos que vimos primeiro, sejam os da parteira e o da mãe,
associados aos dos familiares e pessoas visitantes, sejam os das relações que
cultivamos ao longo da vida.
De 1996 a 98, presidi a
União Brasileira de Escritores em
Goiás. Tempo de muito trabalho, num esforço ora hercúleo, ora dantesco, sempre
no empenho de preservar a união e pugnar pela valorização dos fazedores de
literatura em nosso torrão. Contei, naquele tempo, com valiosos companheiros na
Diretoria, destacando as novas amigas Placidina Lemes de Siqueira e Ana Cárita,
o saudoso professor (fui aluno dele no Liceu) Aldair Aires, o dinâmico e
inesquecível Getúlio Araújo e, de especial realce, a vice-presidente Maria
Luísa (então, apenas Malu) Ribeiro, parceira inseparável em todos os momentos.
Importantes também eram
Marcos Caiado e os ex-presidentes Ubirajara Galli, Brasigóis Felício e Iuri
Rincon Godinho.
Houve um tempo, na quadra
final do meu mandato – eu sempre disposto a entregar o cargo sem o sonho da
reeleição – em que as coisas se complicaram. Entidade pobre, a sobreviver de
contribuições pequenas dos associados num ofício nada rentável, a UBE deixou de
ser agraciada com doações financeiras advindas do Banco do Estado de Goiás e da
Fundação Pedro Ludovico.
Vínhamos de alguns momentos
de ênfase, como o encontro de escritores do Distrito Federal e Goiás, provocado
pelos colegas brasilienses, capitaneados por Gustavo Dourado, e prontamente
aceito pelos ubeanos de Goiás. Conseguimos o apoio nobre do Castro’s Hotel, em
cujos espaços aconteceu o ápice de nossa festa, após um “tour” por Goiânia, incluindo
a visita dos brasilienses, ciceroneados por nós, à casa e à família de Carmo
Bernardes, falecido no abril
daquele 1996.
Vivi tempos de intensa
atividade, com viagens incontáveis... Muitas a Brasília, tentando viabilizar
projetos no Ministério da Cultura, mantendo contato com os escritores vizinhos;
muitas pelas cidades de Goiás onde
ocorriam eventos literários; duas, ao menos, ao Rio Grande do Sul para os
congressos de poesia liderados por Ademir Bacca; e uma internacional, a Israel,
a convite do embaixador daquele pais; lá, tivemos um encontro de escritores
ibero-americanos – cada país enviou um escritor; o Brasil tinha três, sendo o
carioca Antônio Carlos Secchin (hoje, imortal da Academia Brasileira de Letras)
e dois goianos, José Mendonça Teles e eu.
As contribuições dos
associados eram praticamente simbólicas; grande parte das despesas eram
cobertas com auxílios dos órgãos estaduais citados ou com eventual ajuda de
algum associado. O secretário municipal de Cultura, Padre Cesar Garcia, teve
importante papel como provedor, fornecendo-nos recursos de sua própria economia
para a solução de problemas nossos.
Coisas de amigos, como se
vê...
As entidades culturais sem
dinheiro em Goiás, em quase sua totalidade, costumam eleger como tesoureiro o
escritor Bariani Ortencio. Já vimos casos em que, havendo duas chapas
concorrentes, ele figurava nas duas chapas. Esse cargo era e é, sempre,
destinado a homenageá-lo por sua luta incansável pela literatura e pelo
folclore de Goiás. Bariani, sabendo das complicadas histórias financeiras de
tais entidades, costumava deixar os cheques assinados, confiando no
discernimento dos presidentes.
Comigo o balde transbordou.
Como disse, não pudemos contar com a providencial ajuda do BEG; a Caixego
tivera fim anos antes, numa decisão política nociva a Goiás (não me compete
contar isso agora) e a Funpel decidiu-se por fechar os cofres “àquela corja de
poetas”, que é como a então presidente se referia a mim e aos poetas que
predominavam na direção da UBE.
Tivemos, por uns quatro
meses, uma secretária cedida pela Prefeitura de Goiânia; a moça não quis
continuar conosco e o jeito foi contratar uma secretária e um contínuo, ao
custo de um salário mínimo cada, nos restantes vinte meses de gestão.
Resumo: esses funcionários,
as contas de luz e condomínio, bem como a de telefone, eram pagos com dinheiro
do presidente em sua quase
totalidade, bem como os custos de viagem – combustível e hotel; às vezes,
comida também – pelo interior. Nos últimos meses, o presidente estava falido –
e sua família também.
Nesse entrevero final, tive
problemas com a conta, como não pude evitar. Alguns cheques foram devolvidos
pelo banco. Um desses cheques, descontados com um agiota disfarçado de
“factory”, de valor maior que o trivial, foi informado ao tesoureiro Bariani
que, indignado, desabafou com dois colegas que o visitavam no momento; o
resultado foi a imediata montagem de uma rede de telefonemas e fuxico na
calçada diante do prédio da UBE, na Avenida Goiás com a Rua Dois.
Segurei as pontas. Se o tesoureiro
não me procurou para esclarecer as coisas, eu também – tão cabeça dura quanto
ele – não o procurei para dizer nada. Espalhava-se pela cidade que o presidente
estava roubando da UBE.
Muitos companheiros,
conhecendo a realidade dos fatos, alinharam-se ao meu lado e defendiam-me das
injúrias cometidas pelos “ouvintes” do desabafo do tesoureiro.
Se eu tivesse tido um minuto
de bom senso, teria ido até ele buscar conselhos; certamente, teria recebido
orientação sábia sobre as medidas a tomar, em lugar de ser alvo da boca
venenosa de apenas dois escritores amantes da maledicência e, àquela altura,
apenas ávidos por difamar um companheiro.
Eu acabara de assinar um
convênio com a Universidade Salgado de Oliveira do qual não desfrutaria no meu
mandato já próximo do fim; por ele, realizaríamos um concurso de ensaios, com
um prêmio financeiro simbólico ao vencedor, remuneração à comissão julgadora,
publicação de mil exemplares do trabalho vencedor e a UBE teria uma sobra capaz
de custear condomínio, luz e telefones pelo ano todo e possivelmente uma
pequena reserva para eventuais despesas de viagens – sempre realizadas em carro
do presidente (eu e os meus antecessores e sucessores).
Depois desse entrevero,
realizei ainda a entrega do Troféu Tiokô, que estava esquecido há pelo menos
cinco anos; nessa cerimônia, instituí, com apoio da Diretoria, diplomas de
mérito, de modo a aliviar os custos com a confecção das estatuetas; e também,
de minha iniciativa, com apoio da diretoria, concedemos diplomas de mérito a um
médico que teve coragem de denunciar, em Boletim de Ocorrência na Polícia, a
falta de importante equipamento capaz de salvar vidas no Hospital de Urgências
de Goiânia, bem como a um jovem funcionário público que, idealista, instituiu
em Goiás a luta de prevenção e combate à AIDS. É bom lembrar que tanto esse
médico quanto o funcionário vinham sendo perseguidos pela cúpula do Executivo
goiano. Nossa atitude emprestou-lhes um reforço de dignidade.
Concluí minha gestão com a
sensação do dever cumprido e com a questão financeira sob duas análises: um
cheque de valor próximo a dois mil reais a ser pago, e um saldo em dinheiro e
contribuições a receber (de solução fácil, pois que equivalia a débitos de
diretores eleitos) capaz de cobrir o valor questionado. O presidente que me
sucedeu, o poeta Coelho Vaz, solucionou a pendência, ao seu modo eficiente e
sóbrio.
O lamentável, para mim, que
sou um ideólogo do amor e da amizade, foi o estremecimento entre mim e Bariani
Ortencio. Sei que nos admiramos à distância, e sei também que não concordamos,
mutuamente, com as nossas atitudes muitas vezes diferenciadas, mas
respeitávamo-nos nas diferenças e admirávamo-nos por nossas competências.
Há poucos dias, como que
envernizando um passado alongado por diferenças, tive chance de me aproximar
dele além do formalismo de nossos encontros na Academia Goiana de Letras.
Estive em sua casa para entrevistá-lo para o citado projeto de memória da
Academia e do Centro Cultural Oscar Niemeyer.
Lembrei-me que em 1982, num
programa chamado “Boa Tarde, Goiás”, da TV Brasil Central, entrevistei-o ao
vivo, diante das câmeras, para todo o Estado de Goiás. Data dessa época nossas
primeiras conversas e discussões inevitáveis.
Sempre achei fácil
entrevistá-lo; conheço bem sua vida e sua obra, tanto em livros quanto na tevê,
em literatura e no folclore. Sei de sua prosa rica e de seu amor pelo folclore,
especialmente pelas comidas e mezinhas (é com Z) que enriquecem seus trabalhos.
E se somos confrades acadêmicos, sendo a Academia um clube vitalício, por que
mantermos aquele afastamento que em nada me agrada? Acho também, sem falsa
modéstia, que posso lhe fazer bem, ao meu modo.
Não sei o que pensa o
Bariani, mas seu coração descende também dos similares apaixonados da formosa
Itália; acredito que ele aceita, com
cordialidade, a amizade que lhe proponho, renovada e sem máculas.
Pode ser, meu velho?
* * *