Césio, menos 25
Será que posso chamar a isso
um “trocadilho com números”? É que, há poucas semanas, tivemos a tal
conferência Rio Mais 20, em remissão à que aconteceu em 1992... Em Goiânia, e
para espanto mundial, tivemos o acidente radiológico – de triste memória, mas
que não deve ser esquecido jamais.
Era setembro, a cidade se
agitava. Acontecia, no nosso enorme e festejado autódromo, uma etapa do certame
mundial de motociclismo. Em setembro, os corações dos goianos festejam o tempo.
É quando as chuvas se anunciam, com o florescer das mangueiras e a festa de
cores das árvores, na profusão dos ipês e no regozijo das buganvílias, entre
outras igualmente belas. E se à natureza juntava-se um evento de alcance
internacional, a alegria se dava também no âmbito externos das nossas almas.
Chegaram as primeiras
notícias de que algo estranho acontecia no tradicional Bairro Popular,
importante segmento urbano no centro de Goiânia. Pessoas acorriam a postos
médicos, acometidas de graves feridas e outros incômodos. O grande público não
sabia, não se deixou que a imprensa fosse informada – um escândalo poderia
tirar de nós a festa das potentes motos e a cidade mudaria da página alegre dos
esportes para a dramática dos tristes acontecimentos. Mas, aos poucos, a notícia
corria de pessoa a pessoa, das esquinas aos bares, dos pontos de ônibus às
repartições públicas, do comércio às sacristias...
Todos souberam rapidamente:
coletores de ferro-velho encontraram, como que abandonada, uma espécie de
máquina – uma caixa de ferro que exigia alguns pares de fortes braços para ser
removida. Venderam-na a um sucateiro na Rua 57. Este, com a ajuda de alguns
empregados, abriu a peça e encontrou uma pequenina cápsula de cor azulada;
quando tocara, soltava um pó. E descobriu-se que esse pó azul brilhava no
escuro. Em pouco, seus parente e amigos, vizinhos e curiosos tocavam aquilo. E
como numa maldição comum em filmes épicos, as pessoas passaram de encantadas a
contaminadas.
O escândalo foi inevitável.
Brasilienses – moradores do Distrito Federal, encravado em Goiás – recusavam
queijos de Caldas Novas e frutos de Uruaçu ou ainda qualquer coisa de
Araguaína, Aruanã, Rio Verde ou Tocantinópolis (ainda não havia o Estado de
Tocantins), “receosos” de se contaminarem, ainda que Brasília esteja a muito
menor distância de Goiânia. Em São José do Rio Preto, o garçom perguntou minha
origem – Goiânia – e a informou ao maître;
este olhava-me à distância, mas aceitou sem reservas o meu cheque com o timbre
do Banco do Estado de Goiás, não demonstrou medo.
Compradores de produtos
goianos ameaçavam devolver a carga, alegando que poderia estar contaminada; mas
aceitavam um desconto substancial – sempre proposto por eles, clientes – sob a
condição de ignorar o risco de contaminação... Ficamos vistos, em todo o país,
como um povo nojento, asqueroso: goianos contaminam; goianos transmitem câncer
(sic)...
Daí eu propor a operação
menos – menos 25 anos para que a aura da morte desapareça de vez de sobre nós,
de em torno de nós! Desde 1987, apesar o acidente radiológico e apesar de todo
o preconceito plantado e disseminado (esse preconceito foi mais contaminante do
que a radiação do césio 137), mineiros, paulistas, cariocas, nordestinos,
sulistas etc., mas principalmente brasilienses, continuaram se casando com goianos,
de ambos os gêneros.
Tive medo diante da notícia.
Mas, em pouco, convenci-me de que cada segundo passado é irreversível. Qualquer
correção só é possível ante a realidade, a nova realidade. E assim,
sobrevivemos todo este pós-césio, com tristezas e alegrias, angústias e
felicidades. A vida seguiu seu rumo, pois.
O que conta é saber.
Sabendo, evita-se – quem sabe?
* * *
Um comentário:
Foi um acidente de grandes proporções e triste memória, mas você abordou um lado pouco falado: o preconceito advindo do medo. Lembro-me de uma cena mostrada na revista Veja: centenas de latões amarelos com o símbolo "radioativo". E já se passaram 25 anos. Impossível esquecer.
Postar um comentário