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domingo, novembro 03, 2013

Do fundo do peito


Professoras Neuza, Mara Rúbia e Maíza

Do fundo do peito



Neste finzinho de mês (outubro, 2013), participei de uma festa que já se torna tradição na Escola Municipal Alice Coutinho (Vila Morais, Goiânia). Dentre as atrações houve avaliação de pesquisas, pelos estudantes, sobre O Homem e as Virtudes e ainda dança, teatro e música (instrumental e canto), além de um desfile de moda.

Uma aluna, a poucos passos daquela célebre viradinha, sentiu a dor que lhe causavam os sapatos de salto. Bastou-lhe um passo em falso para, num olhar expressivo para a professora Mara, que coordenava tudo, e com uma expressão decidida desfez-se dos sapatos e continuou seu caminhar elegante, de pés no chão, sob aplausos dos colegas e professores e a aceitação silenciosa da diretora Cristina.

O olhar da linda mocinha para a professora, como quem anunciava a decisão de continuar descalça, marcou forte em mim. Senti que ali estava uma pessoa decidida: ela será sempre capaz de desfazer-se do que a incomoda, e veio-me à memória a letra de um antigo samba: “Primeiro eu, depois o samba / Ela se engana quando pensa que venceu / primeiro eu”.

Flagrante do desfile com a modelo descalça 

Pensei: eu teria continuado, talvez mancando... Mas que bobagem! Certa está a menina-moça (apelido antigo para adolescente feminina) que não nasceu para as dores; é uma pessoa determinada a contornar problemas de modo radical,  sim – mas sobretudo capaz de cuidar de si. Em minutos, visitei minha vida esticada, quero dizer, dos anos mais verdes até agora; vi que em todo o tempo fui alvo de dois sentimentos, dominantemente, dentre os que me cercam: amor e ódio – considerando amor também a amizade (e a admiração) e incluindo na faixa do ódio o descaso (e a inveja).

Nunca me surpreendi com inveja de ninguém; mas isso não é virtude em mim, é fruto da minha exacerbada vaidade. E, a bem da verdade, de um certo conforto, também. Ter inveja deve doer demais. Melhor alimentar os sonhos sob um critério de avaliação sóbria, considerando as possibilidades de se chegar às metas. Em seguida, é lutar: planejar, estudar, pesquisar, dedicar-se – ir à luta.

Nesse ínterim (nossa! Há muitos anos não usava essa palavra; e não a ouço há décadas!), vislumbrei momentos de dedicação e carinho de que fui alvo – essas coisas a que chamamos de ternura, atitude de desprendimento que as pessoas de bem costumam trocar. Saí da escola com aquelas imagens estimulando minhas lembranças e conceitos. Gostei do auto-amor daquela menina! Que idade terá, quatorze anos, ou quinze? 

Ternura é algo que vem dos outros; mas pode vir de dentro de nós – como demonstrou a garota de quem falo. A gente registra as “externas” (as que recebemos e as que oferecemos). Já tive os que me ajudaram nos estudos; os que me acolheram de modo comprometedor. Nos ambientes de trabalho sempre recebi muito de amizade sólida e desinteressada: pessoas que nos trazem uma boa notícia; ajudam-nos numa promoção; indicam-nos para um treinamento; recomendam-nos.

Aquela menina fez-me lembrar de um colega de trabalho que, para crescer profissional e financeiramente, delatava colegas à estrutura de repressão e comparecia aos quartéis para ajudar a torturá-los, arrancando unhas com um alicate. Morreu esquecido, ainda que cercado de conforto material. A moça que se desfez dos sapatos deu-me uma definição de seu futuro: ninguém lhe causará dores. Ela removerá de seus pés o incômodo e há de se firmar por seu caráter e força de vontade – causará encantamento com o amor que tem a si própria e, certamente, se expandirá àqueles que estejam à sua volta.


* * *



19 comentários:

Mara Narciso disse...

Desfazer-se de tudo que cause desconforto é um bom caminho para amadurecer e aprimorar-se? Receio que não.

Profa. Agda Maria disse...

Ler esse texto foi algo muito prazeroso. Além de uma linguagem leve, faz-nos refletir sobre nossas atitudes diárias. Uma verdadeira lição de vida. Certamente muitas pessoas se identificarão com a "menina-moça". Outras, talvez, irão rever suas vidas, seus valores, seus sonhos... Vale a pena ler! Parabéns, Luiz de Aquino mais uma vez!

Profa. Luane Rosa disse...

Ter inveja deve doer demais. Melhor alimentar os sonhos sob um critério de avaliação sóbria, considerando as possibilidades de se chegar às metas. Em seguida, é lutar: planejar, estudar, pesquisar, dedicar-se – ir à luta. Luiz de Aquino)

Meg Moon (Paris, FR) disse...

Luiz de Aquino meu chéri, o que mais me tocou no seu maravilhoso texto, foi sua forma de "visao" ... pura sensibilidade poética ! Aconteceu aqui quase igual. Somente que a manequim tirou os salto e continuou o desfile "carregando os sapatos" com muita elegância ! ... Pena que nao teve nenhum com "a visao" poética. Criticaram até dizendo que se ela nao "suportou o salto no tempo de um desfile" era incompetente e devia mudar de profissao ... Tudo esta nos "olhos que vêem" ... Bravo meu amigo !

Meg Moon (Paris, FR) disse...

Luiz de Aquino meu chéri, o que mais me tocou no seu maravilhoso texto, foi sua forma de "visao" ... pura sensibilidade poética ! Aconteceu aqui quase igual. Somente que a manequim tirou os salto e continuou o desfile "carregando os sapatos" com muita elegância ! ... Pena que nao teve nenhum com "a visao" poética. Criticaram até dizendo que se ela nao "suportou o salto no tempo de um desfile" era incompetente e devia mudar de profissao ... Tudo esta nos "olhos que vêem" ... Bravo meu amigo !

Alessandra Zabala Capriles disse...

Uma linda visão, querido poeta!

Profa. Luane Rosa disse...

Como sempre, Luiz, você me fez emocionar com seu texto, sua visão crítica e suas palavras poéticas... Obrigada por abrir nossos olhos nos mínimos detalhes da vida!

Profa. Luane Rosa disse...

Como sempre, Luiz, você me fez emocionar com seu texto, sua visão crítica e suas palavras poéticas... Obrigada por abrir nossos olhos nos mínimos detalhes da vida!

Carlos Teixeira Lima disse...

Um simples andar descalço,o poéta escreve um belo texto,que toca nas questoês humanas mais profundas, e simpes.

Jales Naves disse...

É importante ressaltar o trabalho que realiza, de inestimável valor e pouco reconhecimento. Somos todos admiradores de sua ação.
há 21 horas · Curtir (desfazer) · 1

Elísio Naves Duarte disse...

Fomos coroados com a presença do ilustre poeta Luiz de Aquino. Café Cultural com poeta, fala simples e robusta, elegância e humildade. Parabéns pelos ensinamentos e por mostrar também um pouco das suas virtudes.

José Fraga disse...


Parabéns Luiz! É a AAL se fazendo presente!

Shiirlene Oliveira disse...

Nossa que orgulho, por ser educadora e ter um poeta em nosso meio...

José Pantoja disse...

Parabéns meu compadre Luiz. Fico muito feliz por vê-lo brilhando sempre na área cultural....

Daniela de Brito disse...

Que maravilha, meu admirado escritor. Com certeza abrilhantou o evento.

Fátima Rosa Naves disse...

Parabéns uma troca maravilhosa, educação e poesia.

Elder Rocha Lima disse...

Seu Luiz de Aquino:
Esse seu texto "Do Fundo do Peito" é mais que uma crônica - é uma exposição aos leitores
do pensamento e sentimentos de um sujeito que tem um coração no lugar certo.
Peço a bênção.

Profa. Mara Rúbia disse...

Amigo,

Você escreveu uma grande metáfora!! Tirar os sapatos que nos apertam é como extrair nossa máscara social e dispensar a fraqueza a que a sociedade nos propõe. Como diz o poema abaixo: "vida é sapato apertado", mas, creio eu que aquele que o tira em passarela pública mostra-se forte, desvinculado das opressões a que somos submetidos.
Muito reflexivas as suas palavras expostas na crônica. Fiz leitura, interpretações e discussões com os meus alunos. Tudo isso sob o olhar orgulhoso e feliz da protagonista Gabriela Jordana, a dona do feito em questão.
Que estejamos de pés e corações livres.

Um abraço carinhoso.


Vida é sapato apertado
A primeira vontade é tirar
Incomoda e dá bolha
É preciso tempo para acomodar

Vida é sapato novo
Todo novo tem seu preço
Até um entender o outro
Cada dia é um novo começo

Vida é sapato bico fino
Difícil usar com elegância
Exige esforço, experiência
E certa dose de tolerância

Por mim ficava só de chinelo
Ou descalça andando no mato
Mas, a vida cobra e exige
Que se esteja adequada ao fato

Assim, deixo meus chinelos
E exponho meus pés à dor
Torcendo para que a vida perceba
Que faço isso só por amor

Mônica Raouf El Bayeh

Helena Sebba disse...

Meu caro Luiz, sempre leio suas crônicas, cometários e críticas. Considero - o pessoa de olhar lúcido, claro e "venenoso",no melhor e mais perfeito sentido, é claro, do comportamento e atitudes das pessoas nas mais variadas situações. O acontecimento do sapato, da jovem desfilante, lembrou-me minha filha, Flávia, que em um desfile no GREMI, deixou cair o chapéu, laboriosamente confeccionado; ela abaixou-se, não o recolocou na cabeça, mas sim o usou para saudar o público, que a ovacionou de maneira delirante. Foi um momento inesquecível, do qual toda a cidade se lembra.
Meu caro, sei que lhe devo um almoço, não esqueço de minhas promessas... mas é que questões fora de meus planos se interpuseram. Mas promessa é dívida, e ela, a promessa, será cumprida. Tenha paciência, o dia chegará.
Fico feliz em dizer-lhe que fui vencedora do Concurso da UFG, Coleção Vertentes, com um romance, "Sob o manto do rei", que será editado ainda neste ano, conforme confirmação da Universidade.
É um livro um tanto doido, o povoado de São Ranulfo é a minha Macondo, mas o bom e certo é que fui vencedora. Gostaria que você celebrasse comigo esta vitória, não em termos de ganhos materiais, mas de reconhecimento (será que mereço?), a alguém do interior, dona de casa, que por acaso escreve, e conseguiu façanha deste quilate.
Reiterando meus cumprimentos pelos belos (e úteis) artigos, despeço-me com renovados votos de admiração, pleiteado-lhe contínuos sucessos.
Abração.