A vaia e o
índex
Comemorar é uma palavra
composta: co (juntos) memorar (lembrar). Mas seu uso, através
da vida e dos séculos, ganhou o sentido de festejar – talvez porque as pessoas
gostam sempre de recordar – ou mais: de “memorar juntos” –, de festejar o que
foi bom.
Vimos que as pessoas que
festejaram os 50 anos do golpe militar que nos pôs em 20 anos de ditadura por
revezamento foram muito poucas; quase o mesmo número das que resolveram, em
todo o país, manifestar-se contra os primeiros jogos da Copa do Mundo que se
realiza estes dias.
Outros, porém, querem comemorar o golpe com atitudes idiotas.
Uma delas é a vaia – aquela dirigida à presidente Dilma Rousseff na Arena
Corinthians. Entendo que em um dos mais remotos momentos (quanto tempo durou
esse momento, hem? Nem imagino...) da Humanidade, aquele em que o primata bicho
sapiens entendeu que os sons emitidos pelo aparelho fonador diferiam conforme
seu estado emocional e a intenção de seu anseio por comunicar-se podia traduzir
algo: e inventou-se a fala, inventaram-se as palavras... Mais tarde, viria a
escrita.
Ao vaiar, o indivíduo viaja
àquele estado primário. Os de agora querem ser distinguidos como bem-formados,
que sabem pensar; mas ao vaiarem, transmudam-se em primatas afônicos, ou
melhor, emitentes de sons de um só tom, de uma só emoção – a do ódio – e
tornam-se antecessores dos trogloditas homens da pedra lascada. Em suma, o
homem-besta, o primata ignorante e irracional.
Não me bastasse o que
conceituo acima, adotei, há muitas décadas, a atitude do respeito às
autoridades; se a pessoa atinge um patamar, se se eleva ao cimo da pirâmide
organizacional do Estado, merece respeito: essa pessoa torna-se, sim,
representante de um grupo enorme a que chamamos Nação (nação é povo; país é
território; e estado é a organização política – as pessoas costumam tornar
essas três palavras sinônimas, mas elas são somente palavras afins, cada qual
com seu significado).
“Ah!”, dirão alguns, “quer
dizer que ditadores também merecem respeito?”. Sim, merecem – ainda que com
todas as reservas possíveis. Alguém o pôs lá e muitos o aceitaram; se a
maioria, ainda que oprimida, se põe em silêncio é porque aceita; portanto,
respeito tanto um Médici quanto um Lamarca – o primeiro por ter “chagado lá”,
mesmo que pelas armas, e o segundo por ter se oposto a tudo aquilo, mesmo que
com as armas. Não respeito é a corrupção, a roubalheira e a petulância (a
petulância conduziu o presidente Collor ao confronto com o Congresso; o impeachment foi a resposta do grupo
confrontado). Desrespeito também a incoerência.
Mas vaia houve. E houve
também a aceitação pela pessoa vaiada, pois recusou-se a discursar, como era
protocolar, declarando aberta a Copa do Mundo, receosa de ser vaiada; e
aceitou-a ao responder a agressão, no dia seguinte, com um discurso em tom
partidário (sempre achei que um presidente da República, pelo seu papel de
estadista, deve distanciar-se protocolarmente dos partidos, mas a nossa
presidente, notória pela agressão às regras da Língua, comporta-se mais como
cabo eleitoral do que como estadista).
Dilma Rousseff deveria
confiar nas pessoas que lhe devem servir de prepostas, de porta-vozes, para o
exercício do discurso menor de alegação às vaias; não é papel da nossa maior
mandatária nivelar-se por baixo, descer aos porões da vaia para vociferar como
os jornalistas que o vice-presidente de seu partido compara a cães (e chama de
jornalistas cineastas e humoristas, misturando tudo, como quem ignora as diferenças
profissionais).
É notório que a Opinião
(assim mesmo, em maiúscula) é um instituto universal de natureza pessoal: a
liberdade de opinião é um preceito basilar da democracia. Exerço-o com
amplitude, mas com um cuidado simples e igualmente basilar, o de respeitar as
pessoas a quem aprecio, avalio, julgo ou posso atingir, no bem e no mal. Posso
opor sem desrespeito e posso admirar sem bajular – isso eu busco fazer sempre e
principalmente não quero impor meu procedimento, apenas defini-lo.
Eu jamais vaiaria Getúlio
Vargas – nem no período de 1930 a 45, nem no de 1950 a 54 –, nem JK (que após
uma vaia de quatro minutos, anotados por ele próprio, recebeu aplausos de dez
minutos, dos mesmos estudantes de engenharia que o vaiaram, só porque disse:
“Uma nação cujos estudantes vaiam seu presidente da República por quatro
minutos é uma nação democrática”) –, nem os ditadores do tempo dos
cinco-por-vinte-anos (aliás, 21; foi de 1964 a 85) nem FHC nem Dilma. Nem
Collor, o mauricinho, eu vaiaria.
Mas não consigo digerir o
vice-presidente do PT com o seu índex de jornalistas pitbuls (sei lá como
escrever isso! Nem vou pesquisar). Seu artigo é do mesmo nível das vaias. Tenho
minhas escolhas políticas, claro, mas também isso há que ser exercido com a
dignidade e o respeito ao próximo que formam o conjunto de comportamentos a que
chamamos de ética. Se alguns dos articulistas, apresentadores, humoristas e
atores interpretando personagem escrevem e falam coisas que incomodam algum
partido, os partidos que os processem ou, em questões menores, que respondam a
eles pelos mesmos canais, na mesma intensidade e na densidade da informação
original.
O que não fica bem é um
partido (seu vice-presidente certamente fala por ele; ou o povo, o leitor, o
eleitor entenderá assim, a não ser que o presidente o desminta – e isso é pouco
provável) assacar contra uma categoria inteira, chamando de jornalistas todos
os seus declarados desafetos. Até porque são muitos os jornalistas filiados ao
PT e muitos não filiados que se identificam como simpatizantes – e muitos ainda
há que se afastam dessa simpatia por tantas pisadas em falso com o partido,
antes tão ético, agora usando salto alto nas andanças do poder.
Incomoda-me que ao lado de
tantas realizações sociais admiráveis os maiores do PT se alinhem em defesa de
alguns membros apanhados em atos condenáveis e acusem juízes de perseguir e
agir fora da lei. Isso é tão ingênuo – ou estúpido – quanto acreditar que o
governo brasileiro comprou o titulo de Hexacampeão à FIFA (o empate com o
México levou um torcedor goianiense a supor que, se comprou, certamente a
presidente Dilma sustou o cheque na manhã do dia 17). Se Joaquim Barbosa e seus
pares ministros que votaram pelas condenações julgaram à revelia da Lei, os
outros poderes e o povo aceitariam isso passivamente? Isso teria validade?
Encerro com um certo
cansaço. É que não queria, e não quero, tecer análises e críticas aos feitos de
governo. Eu apenas pediria ao ex-presidente Lula e à presidente Dilma que se
mantivessem na dignidade do cargo que os qualifica. A prática partidária, tão
democrática, pede, sim, em algumas circunstâncias, tomadas de posição e alguns
discursos desgastantes, mas práticas que não devem ser exercidas por estadistas
assim feitos pelo elevadíssimo valor do voto popular – valor esse que, sem
qualquer dúvida, Dilma e Lula conhecem muito melhor que eu.
* * *
Um comentário:
Boa Noite Poeta Luiz de Aquino. Maravilhoso texto, parabéns! Gostei imensamente de tudo que você disse, principalmente que a Presidente Dilma comporta-se mais como cabo eleitoral do que como Estadista. Eu também não gosto de vaias, mas como vivemos uma DEMOCRACIA e, por tudo que estamos vivendo no Brasil atualmente, acho que essa vaia foi bem merecida.Ireci Maria.
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