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sábado, junho 21, 2014

Iguais que se atraem

Iguais que se atraem


         Lá pelos idos de 1980 e poucos, era eu repórter da Folha de Goiás – o jornal pioneiro de Goiânia, cujo nome se escrevia, erroneamente, Goiaz. Cuidava de notícias policiais e, para isso, visitava delegacias e cadeias, conversava com delegados e agentes, bandidos e suspeitos (naquele tempo, suspeito era uma pessoa sobre quem havia alguma desconfiança; hoje, é bandido flagrado ou criminoso confesso, porque o fervor da defesa dos direitos humanos exaltou os marginais e os truculentos em desfavor dos que se formam no cada vez maior contingente de vítimas).

         Era uma época de transição. Governava o país o último dos cinco generais de plantão, João Batista Figueiredo; em 1979, veio a Lei da Anistia e a partir daí pudemos escrever sem o rigor da presença de censores nas redações. A Linha Dura enrijecera – dinamitava bancas de jornais que vendiam O Pasquim e outros “nanicos” (apelido dado aos jornais de resistência, editados em formato tablóide) e tentou explodir o Riocentro em véspera do Dia do Trabalhador (1980).

         Profissionais da imprensa ainda eram visados. Éramos maltratados por chefes e chefetes de repartições públicas que, no mínimo, deixavam-nos por horas na espera em suas antessalas. Mas reagimos: eu mesmo adotei a prática de publicar o nome da autoridade recalcitrante, destacando-lhe a crença em que a liberdade estava remota...

         Domingo passado, o Fantástico da Rede Globo denunciou comportamento irregular, aparentemente tolerado em penitenciárias de Goiás e do Rio Grande do Sul. Prenunciei que o secretário Edemundo Dias já esvaziaria as gavetas. E a destituição se deu, como esperado. Certamente, detalhes das investigações acerca do fato correrão sob alguma reserva, como acontece em casos similares (privilégios excepcionais a presidiários que comandariam ações de tráfico, assaltos e mesmo assassinatos).

         Há quem fale em “poder da imprensa”; e há quem fale em articulações de bastidores. Alguém falou em corporativismo – palavra depreciativa para qualificar ação de grupos interessados em benefícios para seu segmento. Este conceito é também fruto da onda do “politicamente correto” que assolou o país por alguns anos, naquela fase pós-redemocratização. Costumo responder que todo grupo busca proteger-se, sim – haja vista a mobilização de lobistas a pressionar deputados e senadores quando da votação de matérias legislativas em que se vislumbram benefícios ou a valorização da categoria. Algo como o que fazem os médicos quanto à polêmica medida sobre o Ato Médico.

         Dos jornalistas, posso lembrar apenas que buscamos, com muito jogo de cintura, evitar a matança de repórteres. Em Goiânia, recentemente, tivemos o primeiro caso de assassinato de um jornalista por emitir opinião sobre um time de futebol – antes, os mais visados eram repórteres políticos e os da área policial.

         Volto aos tempos em que eu mesmo fazia cobertura policial, compartilhando o ofício com os colegas fotógrafos Álvaro Soares (saudoso Álvaro!) e Antônio Alfredo (que se aposentou e sumiu de Goiânia). Na Secretaria da Segurança Pública, o secretário (oficial do Exército, imposto pelo governo federal) resolveu nomear uma delegada de polícia como assessora de imprensa. A moça, bela e gentil, tinha o péssimo hábito de privilegiar informações para determinados veículos – especialmente a tevê.

         Um dentre nós, num dado momento, resolveu acabar com aquilo e postou-se entre a câmera e o secretário (a repórter já com o microfone aberto) e ameaçou: “Só saio daqui depois que liberarem nossos releases; chegamos primeiro e não vamos dar lugar na fila”. O secretário tentou argumentar, dizendo que se tratava “de uma mulher, primeiro as damas”, mas não foi ouvido. Os repórteres dos veículos escritos fecharam-se cheios de razões.

         Curiosamente, a coleguinha da tevê não se opôs ao que impusemos. E a delegada-assessora viu-se constrangida. O secretário recolheu-se ao gabinete e evitava, sempre, conceder entrevistas. Em poucos dias, aqueles profissionais formalizavam uma pequena mas ativa Associação de Repórteres Policiais – entidade democrática que reconhecia em cada profissional o mesmo valor, desmitificando o que alguns tentam valorizar: uma hierarquia de trabalhadores baseada no poder econômico ou midiático de um ou outro veículo.

         Nenhum de nós, fotógrafos e repórteres, se sentiu ofendido quando chamado de corporativista...


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Um comentário:

Anônimo disse...

Depoimento-crônica valoroso porque faz história da memória….
Itaney campos