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terça-feira, abril 24, 2007

Um poema de Lílian Maial


O SEIO ESQUERDO
Lílian Maial



Aconteceu.
Ninguém espera
E, na primavera,
Foi-se o seio esquerdo.

Foi-se o toque,
Ficou a sensação fantasma
Foi-se o alimento,
Ficou o vazio no peito.

Como ser mulher, sem o seio esquerdo?
Como ser mãe, sem a mama esquerda?
Como ser profissional, sem o outro par?
Como se olhar no espelho, nua?

O seio direito, encabulado,
Só e pendurado,
Emoldurando o luto
Do parceiro canhoto.

Está faltando o outro.
São dois,
Originalmente dois.
Há que ser dois.

Nunca mais seus dedos
Apertando a carne macia e rosada
Nunca mais sua boca
A brincar de trincar e arrepiar
Nunca mais a dança sensual
Dos pares no banho
E entre lençõis de cetim.

Há um imenso vazio
Bem maior que a mama
Que atinge camadas profundas
Da própria natureza fêmea.

Há a ausência constante
Lembrada todo o tempo
Pelo traço da cicatriz
Dessa ferida que não fecha.

Há a dor, os ductos, os lutos
Mágoa infiltrante, ingrata, infeliz
Dias vividos sem perceber
E para quê viver?

Olhos que nunca repararam
Agora recusam-se a olhar
Não tem remédio
Não tem escolha

Tem alopécia, náusea e dor
Tem quimioterapia
Tem agonia
Solidão de espinho e flor

Tão falso o enchimento
Disfarça a roupa
Como peruca da alma
Que dribla olhares piedosos
De mulher barbada de circo
Que extirpa seus próprios caroços.

Os dias arrastados, as horas contadas
Quando volta ao normal?
Quando se acorda do pesadelo?
Ou tentar esquecê-lo...

É tão desigual, tão caolha
Fica sem sentido, tão velha
Um robusto, imponente, desejável
Outro, um traço doente, indelével, lamentável.

Luta diária e desanimada
Para sobreviver – corpo sem jeito
Mulher sem peito, que cala o grito
Tempo finito, seio bonito
Que se foi.



*************

Do livro: "Enfim, renasci!"
Ed Impetus - 2000



Eu e Lílian Maial: sarau no Rio, 27 de agosto de 2006

7 comentários:

Anônimo disse...

Luiz,
Que belo poema! Tão triste e sentido que me doeu a alma.
Beijos aos dois.


Maria Lindgren

Unknown disse...

Neste poema encontramos verdadeiras palavras a desnudar os sentimentos de mulheres fragilizadas pela doença. Fiquei emocionada.
Meus cumprimentos aos dois.

Lilia Andrade disse...

Luiz, minha quase xará é uma poeta incrível mesmo. Lembrei da minha irmã, da minha amiga e de tantas outras que não têm esse dom maravilhoso de expressar os sentimentos com palavras exatas e perfeitas. A elas resta a dor abafada e sufocante. O desespero mudo e disfarçado. Lilian falou por todas as que já passaram por essa experiência e preparou a todas nós que vivemos a possibilidade de passar por ela.

Anônimo disse...

Que lindo que ficou, querido!
E como ficamos bem na foto, hein?
Hehehehe
Obrigada por essa importante divulgação para o alerta de todas as mulheres.
Beijão,
Maial

Anônimo disse...

Parabéns, Lílian. Lindo poema a desenhar com maestria não o seio, que se foi, mas a alma-poesia, que ficou.

Mara Narciso disse...

Lilian,

Viver para escrever o poema maduro da dor e sofrimento que assustam, mas que trazem valores antes desconhecidos. Sensibiliza, não desperta piedade. No começo o temor da morte se sobrepõe a todos os outros medos. Depois a inadequação da assimetira maltrata a feminilidade. Então é estar viva que passa a medir todos os demais aspectos. Ser mulher é mais do que ter duas mamas.
Mara Narciso

Anônimo disse...

realmente é um trauma indelével. o
lirismo visceral dos versos, tradutores eloqüente deste drama,
enterneceram-me profusa e profundamente.