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domingo, abril 08, 2007

Uma crônica de Fernando Quintella(*)


Afinando o discurso

Fernando Quintella

Corria o ano de 1965. Aos sábados, tínhamos aulas de Canto Orfeônico. O professor, Homero Dornellas, grandalhão, simpático, muito falante, pessoa especial, selecionava discos de música popular para mostrar-nos as tendências musicais, arranjos diferentes e outras peculiaridades musicais. Comparadas com as outras matérias, Canto dava-nos o refresco de nem precisar fazer dever de casa, muito menos submeter-nos a provas complicadas, cujos resultados nem sempre podíamos comemorar. Enfim, era a aula relax.

Durante as aulas, o professor comentava sobre os compositores, músicos ou cantores envolvidos nas gravações dos discos. Falava sobre a Rádio Nacional, seus artistas, os sucessos musicais. Falava de um mundo que conhecíamos à distância, mas que a ele parecia próximo demais. Para nós, Dornellas era amigo de toda aquela gente famosa. Amigo do peito, tanta a intimidade com que se referia a cada um.

A idéia foi do José Medeiros. Sempre ele. Pequeno, agitado, sorriso constante –mesmo nas situações mais difíceis –, Medeiros já mostrava naquela época o excelente advogado que se tornaria anos mais tarde. Ninguém escapava do papo do cara. Se bobeássemos, ele emplacava novas idéias, nem sempre de bom senso. E aquela era uma idéia muito louca. Descobrir se o professor Homero Dornellas curtia com a nossa cara ou era mesmo amigo dos artistas de quem falava em sala de aula.

Escolheram-me para repórter. Eu não vivia pelos corredores alardeando que um dia seria repórter? Pois era a oportunidade de mostrar o quanto eu era bom para o trabalho. Deveria pesquisar sobre o mestre. Sua vida, seus amigos, enfim, a história completa. O problema de conseguir fazê-lo era meu. Repórter é repórter, encontra as respostas para todas as perguntas e ponto final.

Caí em campo na mesma semana. Peguei um ônibus para a Praça 15 e lá fui conversar com Henrique Foreis – o Almirante, “a maior patente do rádio brasileiro”. Compositor, cantor, radialista, escritor, uma penca de atividades, Almirante dirigia o recém-criado Museu da Imagem e do Som, onde havia registros impecáveis sobre o meio artístico nacional. Entrei com o pé atrás. Como explicar a pesquisa? Só podia ser homenagem. Ao me receber, Almirante papeava com o professor Ipanema, conhecido historiador carioca. Grandalhão, vozeirão de radialista (como diz um amigo meu, de barítono atenorado ou de tenor abaritonado), Almirante impressionava pela amabilidade e organização. Mesmo assim, tratei logo de explicar a idéia dos alunos do Colégio Pedro II – Seção Norte. A homenagem, essas coisas. Ele sorriu, mas o professor Ipanema deu-me o manjado olhar de quem sabia onde queríamos chegar.

Na sala ao lado, encontramos inúmeros arquivos kardex, com suas pequenas gavetinhas, onde Almirante arquivava os dados de cada item. Foi na letra H. Puxou a gaveta certa e – Shazam! – apareceram os dados do nosso professor. Violoncelista de orquestra sinfônica, dedicado à música clássica, transitava também pelo popular, com o pseudônimo... Candoca da Anunciação! Lá estava a foto denunciadora. O professor, em pleno carnaval, com roupas de Jeca Tatu, o rosto pintado com rolha queimada, segurando estranho instrumento por ele batizado “arranholino” (caixa de charutos, braço de madeira tosca e uma solitária corda de violão ou violoncelo de cima a baixo).

Almirante vibrava com a oportunidade em falar do amigo. Naqueles tempos, quem era instrumentista clássico estava proibido de se meter no popular. Por isso o pseudônimo, forma inteligente de proteger a identidade. Sim, Homero Dornellas era amigo daquela turma toda. E não apenas amigo: parceiro. Tinha 25 músicas registradas, todas em nome de Candoca da Anunciação. Na Pavuna, de 1929, entre outros sucessos dos anos 1930 e 1940, são de sua autoria. Compositores como Noel Rosa, Lamartine Babo e Francisco Alves – o Rei da Voz – recorriam a ele para escrever as pautas das músicas que compunham, antes de registrá-las. Excelentes compositores, ele desconheciam cifragem de pautas musicais. Sem isso, nada de registro.

Minha cabeça estava a mil. Anotava tudo com a maior fidelidade, por justiça ao mestre e raiva do Medeiros. Como eu me deixara levar por idéia tão doida? Estava na cara. Disputa entre aluno e professor pendia sempre para o lado mais forte, ou seja, o professor. Só podia dar zebra. Antes de sair, envergonhado, o professor Ipanema acaba de estragar minha manhã. Com o mesmo olhar de reprovação da entrada, longa cabeleira branca de intelectual, sugere a Almirante: “Se eu fosse você denunciava esse garoto ao seu amigo. Ele veio saber se o professor é mentiroso. Agora está com essa cara de espanto com o que você mostrou. Denuncia mesmo, Almirante!”.

Meto uma desculpa esfarrapada, despeço-me rapidamente e saio rapidinho do Museu da Imagem e do Som com a certeza de que me estrepei todo. Almirante telefonará para o professor Dornellas. Falará sobre a observação do professor Ipanema. Na hora do sufoco, sobrou pra mim, porque ninguém segurará o rabo de foguete. Quem mandou querer ser repórter?

Na mesma tarde, chego à sala de aula esbaforido. Demorei demais no Centro da cidade. Estou atrasado e furioso. Conto toda a via crucis da manhã. Medeiros ouve com cara de inventor de invento que não funciona. Pela fisionomia, vejo que minha teoria estava certa. Sobrou pra mim. Só resta uma alternativa: homenagear o professor.

Sábado, na mesma semana. O professor Homero Dornellas entra em sala, certo de que os alunos participarão de mais um bom momento de música popular. Disco debaixo do braço, sorriso aberto, terno bem cortado, ele estranha a movimentação dos alunos. Levanto-me, peço a palavra e começo um dos mais emocionantes relatos de minha vida. Conto o meu contato com o lendário Almirante. Falo das músicas. Comento sobre o seu pseudônimo. A amizade estreita com artistas. Faço justiça ao mestre e artista. Todos aplaudem o mestre. Ele se emociona. Conta como era difícil transitar entre o clássico e o popular sem se queimar em qualquer dos ambientes. Agradece a homenagem. Toca a campainha, hora do recreio. Saímos todos da sala de aula muito mais leves. Ficou muito melhor assim. Mas eu passei muito tempo com medo de o Almirante telefonar...

(*) Fernando Quintela, economista e jornalista, ex-aluno do glorioso Colégio Pedro II, Seção Norte (Engenho Novo), anos 60 do Século XX. Seu texto fala por si e bem o recomenda. L.deA.

8 comentários:

Anônimo disse...

Esse Quintella !!! Já estava escrito que seria esse grande jornalista.
Eu também fui aluna do Dornellas
(uns aninhos antes) e só hoje fiquei sabendo dessa história.
Nada como se atualizar no blog do Aquino.
Abraços afetuosos aos dois brilhantes profossionais.
Anna Cortás

TH disse...

Oi, Luiz, seu blog está muito bom, mesmo. Entro periodicamente de dou uma atualizada na leitura...Esse poema do abril, da viagem; e essa crônica da escritora sobre a praia estão maravilhosos, amei.
Thamar

Anônimo disse...

Caro Luiz de Aquino:

Feliz Páscoa!

Muito obrigado pela mensagem. Também sou admirador do Dr. Fausto Valle, que, além de tudo isso que Você menciona, é um Grande maçom, dos mais ilustres, cultos e queridos deste Centro-Oeste. Gostei do poema.
Confesso minha ignorância quanto ao Fernando Quintela; mas achei ótima a sua crônica.
E a sua, sobre livros, está também excelente, inclusive, com situações freqüentemente vividas pelos que gostamos de livros e literatura...

BOA SORTE, sempre!

Abraços, Olavo (Goiatuba, GO).

Anônimo disse...

Nossa!
Fiquei encantada e agarrada a leitura desta crônica do meu amigo Fernando!
Que aventura!!! que emocionante!
Ah! Fernando, vc nunca se sairia de uma enrrascada né não?

Luiz , esta foi uma surpresa maravilhosa! adorei!
Um beijo pra os dois!

Anônimo disse...

"Uma crônica de Fernando Quintella"
Luiz, a crônica de seu ex colega do
PedroII e amigo jornalista Fernando
Quintella é ótima, ele escreveu de uma maneira tal que enquanto a lia me sentia como que assistindo a um filme de suspense, se a mim causou emoções, imagine o que não sentiu os que conhecem e foram colegas do jornalista.
Luiz,
parabéns pela homenagem que fez ao
seu colega e amigo, e obrigada por nos dar a oportunidade de conhecermos mais um bom escriba brasileiro.

Beijo,
Lêida Gomes.

Anônimo disse...

Oi, Fernando!
Coisa boa apreciar mais um texto seu, de agradável leitura, com essa incrível forma mágica de levar o leitor com muita habilidade, ao desfecho da narrativa.
Suspense, humor, emoção bem dosados enriquecem essa beleza de crônica, amigo.
E a você, Luiz, obrigada pela feliz idéia de trazê-lo ao seu espaço.
Parabéns aos grandes jornalistas que, para esbanjar talento, estão sozinhos.
Beijos,
Maris Stella

Unknown disse...

,,Excelente o texto contado por amigo do Pedro II ..mas o interessante foi perceber a esperteza...rssssssss A saída ao ver que a cobra ia fumar para o lado dele ....Parabéns ! rsss

Anônimo disse...

Luiz, não lembro se fomos colegas de turma no CPII, mas do Fernando, tenho certeza.
Fui testemunha ocular do momento, e lembro do papel amarfanhado e das mãos trêmulas do Fernando, com o indefectível sorriso que expunha os incisivos separados, suando em bicas.
O interessante é que citei o ocorrido numa crônica que escrevi para os 40 anos da turma.
Se possível me mande o e-mail dele, ou transmita o meu.
Daqui de São Luis-MA, obrigado.
araquem@yahoo.com