Páginas

sábado, novembro 28, 2009

Oió, a livraria

Oió, a livraria




Beatles, blues e ieieiê. Para quem gostava de vogais, tinha também AI-1, AI-2 a sequência, sendo o “cinco” o mais famoso deles. A tal de “revolução”, que se anunciou no dia primeiro de abril de 1964, gostou do poder e resolveu ficar, “elegendo” o segundo presidente pela via indireta e deixando indícios de que ficaria por muito tempo, ainda.

Costa e Silva, o marechal que chamei aí em cima de “segundo”, idealizou o tal de AI-5 e reinou até ser deposto (por uma doença ou pelo triunvirato que fez a ponte para Médici). Ao mostrar sua maior obra ao ministério, colheu do coronel Passarinho essa pérola: “Às favas com os escrúpulos”. E, assim, passaram eles à História.

Ainda não tínhamos, no Brasil, um sistema eficiente de comunicação à distância, felizmente. Se o tivéssemos, talvez a coisa ficasse bem pior. Mas o sistema tinha seus títeres e lambe-botas. Estes, como o bem e o mal, estavam em toda parte. Os de Goiânia já haviam dedurado muita gente. Daí, a prática do beija-mão ante os coturnos sem alguém a quem entregar na bandeja que já contivera a cabeça de Salomé.

Numa reunião (sim, meus jovens, não são só os petistas que gostam de reunião... os caça-bruxas também gostavam), alguém citou, “en passant”, o Bazar Oió. Alguém mais no grupo, certamente mais à direita que o próprio embaixador norte-americano que financiou o golpe de 1964, resolveu indignar-se: o Bazar Oió, a charmosa livraria de Olavo Tormin, parecia-lhe um reduto de esquerdistas, terroristas e comunistas, um acinte ao regime e à gloriosa Revolução redentora.

Claro que essa tal reunião é imaginária. Mas tudo indica que tenha havido, sim. Afinal, numa outra, ainda em 1964, e pelo mesmo grupo (é bom frisar que o grupo era constituído de civis simpatizantes à ditadura), decidiu-se por eliminar a tiro um dos companheiros. E o escolhido para morrer (obviamente ausente à reunião) era um jornalista adversário do governador Mauro Borges. Assim, acusariam o inquilino do Palácio das Esmeraldas de assassinato e a “revolução” o apearia do poder. Por coincidência, na noite em que o jornalista seria morto, Castelo Branco, o marechal presidente, assinou a destituição de Mauro.

Pois bem: como não foi necessário matar um dos seus, o grupo, feliz com as medidas do arbítrio, resolveu partir contra o Bazar Oió. Fuxicaram uma história de corrupção, de apropriação do dinheiro público, e acusaram-no, envolvendo outras pessoas igualmente de bem. E o Bazar Oió, que ponteou a vida goianiense desde 1953, acabou fechado definitivamente em 1974. Os bens de Olavo e de sua família foram sumariamente tomados e incorporados ao patrimônio da Caixa Econômica Federal. A família preservou a unidade, apesar da desgraça a que foi condenada para o prazer mesquinho de uns poucos que (estes, sim) locupletaram-se ao longo das duas décadas de ditadura.

Esta é a minha visão de um fato, de uma instituição cultural e de uma família. É incompleta, portanto não equivale à verdade exata, mas esta, a meu ver, é algo utópico, inatingível. E uma boa parte dessa história é contada no livro “Bazar Oió – a ditadura contra a livraria”, da lavra de Lúcia Tormin Mollo, neta de Olavo e de Dona Francisca Hermano Tormin.

Na mesma noite, lancei, em Goiânia, o meu "Meia-Ponte do Rosário, Pirenópolis, ao lado da jovem e talentosa Lúcia Tormin Mollo (Foto: Sinésio Dioliveira).


O livro, lançado na Academia Goiana de Letras na sexta-feira, 27/11, tem o poder de nos conduzir aos bons (primeiramente) e, depois, aos tristes anos das décadas de 1950 e 60. Depois, veio a fatídica idade-média de Médici. E as alegres vogais de antes deram lugar ao canto duro e linear da tal de ordem-unida, seguida do som horripilante dos cascos juntados em obediência ao terror de Estado.


Luiz de Aquino (poetaluizdeaquino@gmail.com)

Nota do autor: Mantive, neste texto, os hífens na conformidade da antiga regra, pois tenho dúvidas sobre os ditames do acordo unilateral ortográfico. L.deA.



6 comentários:

Maria Luiza disse...

Quem esteve na Academias de Letras na noite de sexta-feira teve a oportunidade de presenciar um verdadeiro “memorial de amor”, como diria Zélia Gattai. Constatamos que é possível realizar, sim, a somatória da emoção, da arte, dos afetos e da ideologia. Acredito que assim o processo de conscientização se realiza aos poucos e vai adentrando nas nossas almas e mentes, que às vezes estão inquietas e incomodadas com tanta injustiça social.
Nossa querida Lúcia emocionou a todos com sua firmeza, generosidade e com suas
convicções políticas, qualidades não mais observadas na maioria dos nossos jovens. Querido amigo poeta, você consegue trazer à tona questões polêmicas de forma envolvente e ao mesmo tempo clara e objetiva. Recebemos dois belos presentes neste lançamento. Parabéns!

Osair de Sousa Manassan disse...

Me lembrou um trecho do meu livro, "Alegorias da Razão e do Absurdo"...

E me perguntam “como sobreviveu a tanta dor.”? Eu respondo que ainda estou sobrevivendo a mais dolorosa das aflições, que é a dor moral. É a humilhação de ter o seu eu exposto à violência gratuita, sua intimidade devassada, seu corpo exposto e explorado em todas as suas reentrâncias. Que animal faz esse tipo de coisa? Nenhum, que não seja humano. Os animais se respeitam, não torturam, matam por necessidade vital, matam dignamente. Os animais não torturam nem se ejaculam diante do sofrimento do outro. O homem não merece ficar na categoria dos animais: é um desrespeito ao instinto primário...
As dores que sofri entre gritos desesperados, aquela sensação cruel da eletricidade sacudindo o corpo molhado e despido, e tantos outros requintados métodos de martírio físico passaram e deles só restam algumas cicatrizes. Mas a dor moral, não. Essa se aloja na alma da gente, gruda no existir e nos assombra para o resto da vida. Vira pesadelo recorrente, num eterno retorno, num eterno ferir e machucar, que desespera e entristece os restos dos nossos dias. Os algozes sentem-se orgulhosos dos seus feitos covardes, não conhecem o constrangimento. Arrotam vitória, sem ter a noção de que não há vitória no subjugo pela força, na incapacidade do outro se defender com dignidade e igualdade de condição.
Quer saber mais? Sentiam-se reis, mas eram reis sem coroa, sem glórias reais. Perdidos, agora, sem reinado, vestindo as máscaras da desonra, vagueiam sem conhecer o amor, sem a alegria dos que combateram o bom combate. Sem a grandeza dos que ousaram sonhar e foram em busca do sonho, que se somaram entre outros de igual gentileza, num sonho coletivo. O que são, hoje, esses algozes dos solidários? Não nego a minha repulsa: são seres desprezíveis, vermes que rastejam na lama ensanguentada de seus atos execráveis, abjetos...
____________________________
Bela crônica. O Bazar OIO era um ponto de encontro dos intelectuais da terra e "de outras" terras. Ali se vendia e se produzia cultura... Era menino, mas ainda me lembro bem! Abraços, amigo.

Mara Narciso disse...

Amanheci lacrimosa, com águas rolando em profusão e sem haver um motivo específico. No geral as injustiças massacram-me. Um livro como este citado, mesmo que não tenha o poder de um documento oficial( pois este jamais conterá a história verdadeira- o que é bom a gente fatura, o que é ruim a gente esconde - Rubens Ricúpero), vejo com alegria a coragem dessa escritora em jogar Raios X sobre os anos de chumbo. Alguma coisa haverá de aparecer. Histórias mal contadas não podem ficar impunes. A opinião pública haverá de conduzi-la ao lugar conveniente.

Maria Gildina disse...

Eu também, Luiz, quero lhe parabenizar pelo novo livro . Infelizmente ,estava viajando e não pude lhe cumprimentar pessoalmente. Meu falecido esposo, Syr Roriz, foi muito amigo do Olavo, e na época ,o Basar Oió era um ponto de encontro de uma pleiade de jovens idealistas. Bom saber que a neta presta honagem ao Olavo e a sua saudosa Livraria.
Um abraço fraterno Magy

zinah disse...

Oi Luiz!!!! Estava com saudade desse espaço.....é mto bom visitar esse cantinho e encontrar palavras enriquecedoras e que alimenta nosso intelecto...Obrigada Luiz por existir e ser essa pessoa tão especial....Bjooo

Maria Helena Chein disse...

Luiz,

os fatos daquela época nos vêm à memória. Quanto horror vivemos então.
Muito boa a crônica.
Ficaram satisfeitos (você e Lúcia) com o lançamento? Foi lírico e forte.

Bjs.

Maria Helena