Em 1979, sopravam os primeiros ventos de liberdade depois de 15 anos de mordaça total… Por tempos, imaginávamos que a opressão pelo silêncio era uma mortalha; ninguém tinha mais pose de poderoso do que os censores, regiamente pagos pelo poder público. No mesmo patamar, posavam para a plateia ignara os dedos-duros, delatores sem fundamentos que apenas apelidavam de esquerdistas ou comunistas.
"Três Raças", de Neuza Morais |
Do outro lado do balcão estavam os idealistas que acreditavam na resistência. E estes dividiam-se entre os que atuavam com perseverança na construção das ideias e do ideal de liberdade; eram pacifistas. E havia, ainda, os que preconizavam a luta armada. Também essa ala era dividida, embora não fosse o momento de desunir: entre os que criam na luta armada como modo ideal de mudança, havia os oportunistas. Estes mostraram-se com seus reais perfis na fase conhecida como de redemocratização. Apresentavam-se como teóricos da luta, mas não pegavam em armas – preferiam teorizar sempre, elaborar teses verbais, de preferência às mesas dos botequins e nas esquinas.
Passado o tempo de adaptação à nova realidade, um pouco da biografia de cada um é relembrada por detalhes incoerentes ao discursos difundidos. Há até os que se beneficiaram das indenizações por males sofridos, mas alinharam-se entre os delatores que conquistaram benefícios às custas de dores alheias.
Mon. às vítimas da ditadura |
Bem, vou ceder aos apelos fortes desses falsários e não discorrer sobre isso; eles gostam de evocar o perdão e o esquecimento como modo de manter na escuridão da história seus atos inconfessáveis. Recordemos, porém, outros fatos: comecei falando em 1979, o ano da Anistia, que pretendíamos ampla, geral e irrestrita; foi uma espada de dois gumes e, assim, perdoou-se também a falange de torturadores, à revelia da legislação internacional que não concede prescrição nem perdão para crimes de tortura.
Praça Simão Carneiro (Foto: Marcus Brandão) |
Em 1979, no “Cinco de Março”, recordo-me de ter realizado trabalhos importantes, mas destaco as entrevistas com exilados e clandestinos que retornavam à vida de origem, de um lado; e, de outro, uma série de reportagens sobre o espaço urbano de Goiânia. E falar sobre o espaço urbano de Goiânia, naquela época, era cair no mais comezinho dos problemas: as invasões.
Pobres migrantes invadiram o que se tornou Vila Nova, Universitário (antes chamado de Bairro Botafogo) e Pedro Ludovico, bairros discriminados por agregar gente humilde; o primeiro a se redimir da pecha foi o Botafogo, ao tornar-se Universitário justamente por sediar o “campus” das duas universidades – a Católica (PUC) e a Federal (UFG). A Vila Nova tornou-se aceitável por emprestar seu nome ao time mais querido da capital.
Por meses, denunciei invasões várias; além das já citadas, cometidas por levas de migrantes humildes, havia as invasões milionárias, concentradas em vales aprazíveis como a margem esquerda do Botafogo, no Centro e no Setor Sul, e, em registros da década de 1970, a margem direita do Vaca Brava, no setor Bueno.
Não era tudo: constatei, também, que o poder público era um grande invasor. Empresas do Estado (BEG, Celg e Saneago, além da telefônica Cotelgo, precursora da Telegoiás) invadiam; administração direta também (Policia Militar, Organização de Saúde do Estado de Goiás), e seus alvos eram principalmente fundos de vales e praças. Mas havia também invasões de ruas, como uma das pistas de uma bela e arejada avenida no Universitário, além de ruas da Cidade Jardim obstruídas para que existisse o clube da Cotelgo/Telegoiás.
Até a Prefeitura de Goiânia invadiu. E invadiu espaço estadual, a própria Praça Cívica.
A rigor, a sede provisória (?) da Prefeitura, na Praça Cívica, deveria ser uma réplica do Museu Zoroastro Artiaga (foto). |
Acontece que, por ter sido concebida e edificada no decurso dos governos de muitas fases de Getúlio Vargas, o Estado e a Capital se confundiam, e em nome dessa confusão alguns erros foram cometidos com sabor de injustiça – ou de abuso de poder, coisa comum nas ditaduras. Por exemplo, extinguiu-se, sem que fosse necessário, o município de Campinas para ampliar o território da nova capital. E o Estado manteve, até a década de 1970, um tal Departamento de Terras que gerenciava os negócios de lotes urbanos de Goiânia, tomando para si o poder de gestão que deveria ser da Prefeitura.
Teatro Goiânia |
Até hoje o Governo tem sob seu controle patrimônios que deviam ser do município, como o Teatro Goiânia e os estádios – o Serra Dourada e o Olímpico, este sob o suplício de uma obra interrompida há quatro anos. E sabe-se, como novidade, que a Praça Cívica é propriedade do Estado, pois foi concebida como tal, ou seja, a municipalidade não tem autoridade sobre aquele logradouro público; sendo assim, as leis que dão a ela o nome de Pedro Ludovico (Venerando de Freitas, primeiro prefeito de Goiânia, tentou convencer a Câmara a não fazer a mudança; não conseguiu) e quaisquer outras ficam mortas de origem. Ou não?
Na planta original da cidade, argumentam os que insistem em manter no gramado do Centro Administrativo a estátua eqüestre do fundador da cidade, a Rua 82 era o limite da Praça Cívica; logo, a estátua está em lugar apropriado. Contesto: se tenho uma bela obra de arte, sobretudo se essa peça equivale a uma homenagem, hei de ostentá-la em lugar nobre da casa, ou seja, na sala, e não no quarto de despejo, e a estátua de Pedro está no quintal do Palácio das Esmeraldas, trecho escolhido pelo filho do homenageado para erguer um edifício que protegeria o Palácio do Governo caso a cidade crescesse para o Sul e algum governador, no futuro,resolvesse expandir a Avenida Goiás, demolindo o Palácio.
Coreto - Praça Cívica |
Ora: se a Rua 82 é parte da Praça Cívica, o lado de lá dessa avenida estaria fora do complexo arquitetônico da Praça? Ali há casas ao estilo dos anos de 1960, marcadas pelo modernismo de Niemeyer e seus seguidores; há grandes edifícios que destoam do conjunto; e na própria praça, nas quadras que determinam as avenidas Tocantins, Goiás e Araguaia há o conjunto de prédios em “art déco” que bem identificam a época da construção de Goiânia (década de 1930) – mas o poder público silenciou-se quando os Correios desfiguraram sua sede.
Praça Latiff Sebba (do Ratinho) |
Vivemos, pois, a dissonância entre o original e o atual; a civilização ocidental, em seu berço legítimo – o Velho Mundo, ou Europa – sabe harmonizar o antigo histórico com a modernidade das sociedades contemporâneas. Por que não aprendemos com a Europa? Mas a Europa está distante para nos ensinar, e sabemos que mal aprendemos com nossos pais, bem como não ensinamos bem aos nossos filhos. O lamentável é que, em questões como essas, damos poder a alguns dos remanescentes daqueles tempos da década de 1979, ídolos que cultuamos por uns tempos, mas que hoje sabemos com pés de barro; são pessoas que alegavam leituras sofisticadas nos botequins daqueles tempos, mas que não resistem a frágeis perguntas dos jovens atuais, muitas vezes “intelectuais” cuja formação acadêmica se dá nas páginas da Internet, sem a interveniência saudável das gerações imediatamente anteriores, como professores, pais e avós.
Falta conhecimento de causa. Falta vontade de fazer certo. Falta humildade para aprender. Falta competência para decidir.
Sobra soberba. Sobra autoridade sem conhecimento. Sobra má intenção.
Mas é sempre tempo, e o tempo pede coragem para estudos e decisões. É tempo de mão na massa, com respeito ao passado, compromisso com o presente e fé no futuro.
Centro Cultural Oscar Niemeyer |
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2 comentários:
Que texto, Luiz!
Para mim, uma aula de história, uma lição de vida, um exemplo de cidadania!
Com a indignação e a coragem de sempre!
Incisivo, necessário, coerente, responsável...
Reverencio-te!
Boa noite, gostaria de informar que a fotografia utilizada com a legenda "Pça. Simão Carneiro" é de minha autoria. Inclusive, como se vê aqui (http://farm4.static.flickr.com/3096/3106059195_75c2b9477f.jpg), meu nome foi indevidamente retirado da imagem.
Informo por fim que tal atitude a LEI DO DIREITO AUTORAL Nº 9.610/98. Portanto, inclua os devidos créditos neste post, a fim de evitar maiores consequências. Atenciosamente, Marcus Vinicius Brandão.
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