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domingo, setembro 18, 2011

“O Brasil é feito por nós”

Barão de Itararé: "Só falta desatar os nós"


“O Brasil é feito por nós”


Quem, com mais de 50 anos, não se lembra? Esse era um dos slogans do chamado “regime militar” – tão militar que mandava dispersar grupos de mais de três pessoas nas esquinas, estimulava a delação (quase sempre gratuita, com o propósito de afastar do caminho um colega cujo cargo despertava inveja ou de eliminar concorrentes), obrigava-nos a uma espécie de toque-de-recolher, privilegiava os ricos e pisava nos pobres... dia destes o jornalista Alexandre Garcia lembrou que a ditadura militar acabou com a pobreza chamando pobres de carentes; e outro “global”, Arnaldo Jabor, tem mostrado que os “republicanos” dos EUA odeiam pobres, chamam-nos de “fracassados”.

A ditadura militar era o “partido republicano” do Brasil...

Havia outros: “Brasil – ame-o ou deixe-o”. Sobre este, um humorista do jornal O Pasquim – verdadeira trincheira de resistência – fez um trocadilho poliglota: “Em inglês há uma eufonia – Love it or live it; podíamos tentar o mesmo, que tal “ame-o ou mame-o?”. Certamente alguns jornalistas foram presos por isso...



Um estudante ginasial de Curitiba, lá por 1969 – ano em que foi instituída a disciplina Educação Moral e Cívica – fez piada; seu professor, um sargento do Exército, mandou dissertar sobre o lema daquele ano, “Brasil, conte comigo”. O guri escreveu, da primeira até a última linha “Um, dois, três, quatro...” e o sargento, seriíssimo, não titubeou: mandou prender o pai de seu aluno.



O Brasil é feito por nós” também gerou piadinhas... Alguns cartunistas foram detidos por desenhar muitos nós (sim, plural de nó) dentro de um mapa do Brasil.


Naquela ocasião, eu trabalhava numa empresa com capital público. Mais precisamente, uma “tele”. E o grupo lançou um concurso de monografias, em todas as “teles” do país, sob esse tema. Fui o vencedor, aqui em Goiás. O prêmio era uma viagem a Salvador – apenas a passagem aérea, oferecida pela agência local da Vasp – sem direito a acompanhante nem a hospedagem, nem mesmo a abono de ponto, embora o edital falasse em “uma semana...”. Pedi minha parte em dinheiro, e demorou um tempo até que me fosse repassada; embora eu ganhasse bem, passagem de avião era coisa cara; equivaleu a cerca de metade do meu salário.




O pior estava por vir. Chamaram-me à diretoria. No meu texto, tratei de montar uma “história” do Brasil em forma de uma “história cultural”. Era 1977 e arrematei meu texto com ênfase para escritores e compositores musicais. Inevitavelmente, citei Chico Buarque de Holanda. Na reunião, muito breve, foi-me dito que os cinco melhores trabalhos seriam enviados para a “holding” do grupo, competindo com os vencedores das congêneres nacionais. Mas eu devia omitir o nome de Chico Buarque. 


Recusei-me a mutilar meu texto... E a briga começou. De então até minha dispensa da empresa (19 de abril de 1979), fui transferido de sessão ou departamento, fiquei marcado como esquerdista por simpatizar com um “inimigo da revolução”; havia uma tal ASI (Assessoria de Segurança e Informação) que “descobriu”: eu fora alijado da rede escolar, como professor, por “suspeitas de professar ideologia exótica”.

Minha demissão foi mascarada por motivos criados – o que, mais tarde, conceituou-se como “factóide”. Linhas acima, citei Educação Moral e Cívica; pois bem, lecionei a disciplina no Liceu, naquele 1969. Consegui movimentar o interesse dos alunos pelas coisas nacionais – inclusive por literatura, música, costumes... Analisava com eles letras de hinos cívicos, recorrendo a uma parceria múltipla que, anos depois, foi nominada por educadores de “interdisciplinaridade”.

Senti-me realizado! Ainda era estudante e senti que fazia um bom trabalho de Educação, não melindrei o regime, não deixei motivos para ser tomado por colaborador com o sistema nem como “inimigo da pátria”. Mas, à falta de motivo, restou aos enciumados professores que me viam como um perigoso concorrente não a delação – mas o plantio da dúvida.

Em suma: em poucos anos, criei nome como professor; e aquela dedicação custou-me o que viria a ser a carreira dos meus sonhos: em toda escola aonde em chegasse, não passava de três dias de trabalho – era o tempo para os enciumados descobrirem e espalhar o veneno.

Fosse hoje, meus detratores teriam muito mais facilidade: ouvi dizer que existe um telefone zero-oitocentos para alunos reclamarem de professores, e cada denúncia vira inquérito administrativo.

Será verdade?

* * *



Luiz de Aquino é escritor e jornalista, membro da Academia Goiana de Letras.

8 comentários:

Cliff Seward disse...

Hoje, trata-se de uma questão cultural, mas, se a cultura faz parte da política (e vice-versa) desde sempre, dá no mesmo. Nada mudou, nem mudará. Lastimável.

Tania Maria Barreto Rocha disse...

Luiz, parabéns pela crônica ".O Brasil é feito por nós".NÓS Górdios .Mas que sem a tenacidade ,coerência e esperança...realmente jamais serão desfeitos.

Pedro Du Bois disse...

Caro Luiz,excelente crônica sobre um tempo que teima em não ser passado a limpo. Apenas uma observação, o Alexandre Garcia foi sempre e sempre adepto da ditadura, tanto que foi porta-voz (pode?) do Gal. Figueiredo e só "caiu" porque se pôs a dizer asneiras (mais?) numa entrevista para a Playboy brasileira. Abraços, Pedro.

Mara Narciso disse...

Diante da nossa liberdade de falar o que queremos, lembrar dessa época arbitrária de esquisitices chega a assustar.Boa lista de más lembranças. Sobrevivemos, Luiz.

Maria Dulce Loyola Teixeira disse...

Caro Luiz,
é muito bom ler as suas crônicas, é bom ler um texto de pessoas que ainda conseguem se indignar e criticar o que está errado nesse país.
Outro dia você me perguntou como estava a questão da estátua. Está andando.
Mas, a Praça Pedro Ludovico Teixeira continua sendo desprezada.
Hoje, subindo a Avenida Goiás, vi tanta coisa errada, camelôs, carrinhos de comida (cadê a saúde pública?), a rua suja, faixas em poste - mania acabada no governo do Professor Nion e voltou, amarram as faixas em postes e árvores, fica horrível e depois deixam aqueles montes de cordas de plástico penduradas neles.
Chegando à Praça vi um monte de tendas, parecia uma praça cigana, um amontoado de tendas, sujas por causa da poeira, uma fotografia terrível. Como me entristeço. Naquele momento imaginei a Praça em frente ao Palácio de Buckingham em Londres, a residência da Rainha, com um amontodado de tendas para abrigar uma feira...não permitiriam.
A Praça é hoje a mais feia da cidade. Por que não constroem um espaço para feiras, para lavar carros, mas ali, em frente à casa do Governador - não é local para isso. É muito triste, para não ficar chovendo no molhado.
Abraço,

Maria Dulce Loyola Teixeira

Visite meu blog c/ historias goianas: http://familiapioneira.blogspot.com
"Deus dê-me serenidade para aceitar as coisas que eu não posso mudar, coragem para modificar aquelas que posso, e sabedoria para saber a diferença."

Multiethnic disse...

Muitos nós... Como sempre, excelente.

Tem um selo para vc em meu blog.
Passe lá!

Abraço.

Fatima Rosa Naves disse...

Querido Poeta, excelente crônica, apesar dos nós, gostosa de ler, com casos interssantes ilustrativos da relação cidadã que vivíamos naquela época, que admitamos ou não, desenhou muito da cultura nacional que impera hoje, com algumas pinceladas contemporâneas, para não dizer a atualização da falta de valores e comportamento amorais ou imorais que imperam nas relações cidadãs e políticas no nosso Brasil.

Mariana Galizi disse...

ightsolçPois é, Lu, cabe ao professor desatar os "nós" e criar os laços.
Ainda bem que não calaram a sua voz (ou suas mãos)...