Páginas

sexta-feira, setembro 23, 2011

Égua das letras



Égua das letras



Aquela década de 1960, marcada por tanta coisa que reflete fortemente na vida atual, seria a dos meus anos dourados. Vamos ver? Em 1958, entrei no ginasial; em 1960, torci e distribuí panfletos, fiz discursos infantis nos trens da Central e no frontal do colégio – tentava eleger o Marechal Lott em lugar de Jânio Quadros. A bossa nova surgira com força. Em 1961, paramos as escolas e, com os trabalhadores, o Rio de Janeiro e o país quanto Jânio renunciou.

Em 1963, voltei para Goiás – mas nunca mais Caldas Novas; minha cidade, desde então, é Goiânia, com Caldas Novas na saudade e Pirenópolis, sempre, no coração. O golpe militar em 1964, a revolução na indústria e na propaganda, a mudança de costumes, estimulada pelas novidades musicais e pela pílula anticoncepcional. Casei-me em 1965, aos vinte anos de idade. Ou seja, tudo mudava, tudo!

O idílio romano...

 Cinema? Marcas fortes foram “O Candelabro Italiano” e “Doutor Jivago”, carimbados por duas canções que fizeram nossas cabeças e nossos corações – “Al di là”, para o primeiro, e “Tema de Lara” no épico russo. A melodia italiana, de Carlo Donida e Mogol, virou varinha mágica: cantá-la equivalia a uma cantada (perdoem-me pelo trocadilho, mas fez-se inevitável, agora). De fato, amolecia corações, quebrava resistências. Quantos namoros e casamentos não se fizeram ao som terno e romântico dessa música! “Muito além das estrelas, tu estás, tu estás, muito além”...

Todo mundo comprava, ouvia,
cantava e se apaixonava...
“Tema de Lara”, de Maurice Jarre e Red Steagall, fartamente cantada onde houvesse amor, paixão e (ou) suas possibilidades, fez florir milhões de corações mundo afora! Tive um professor de Inglês em Anápolis (cursei lá um semestre de escola) que levou-nos a letra-poema que contrariava a afirmativa de que as letras de músicas do Tio Sam eram desprovidas de poesia: “Somewhere a hill blossoms in green and gold,
and there are dreams, all that your heart can hold” – ou, em tradução livre “bái maisselfe”: “Em algum lugar um monte se rompe em verde e ouro, e há sonhos, todos os que seu coração puder colher”.


"...a hill blossoms in green and gold..."


Parêntese: sou feliz por ter vivido coisas assim. E mais feliz por lembrá-las. Não é saudosismo nem retrocesso, pois, para mim, o melhor tempo é agora! Entre aqueles anos que deveriam ser dourados – mas turvaram-se pelo cerceamento à liberdade, às limitações das expressões. Só mesmo nossos sonhos continuaram livres e puderam manifestar-se quando “raiou a liberdade no horizonte do Brasil” (do poema que vem a ser o Hino da Independência, atribuído a D. Pedro I). Uma liberdade duramente reconquistada e, hoje, manchada de vícios e péssimas intenções, parte delas concretizadas, outra parte reprimida ao peso da Lei – quando possível, quando escapa de “sanas” e “barbalhas”. 

Não tínhamos medo de lutar 
Nos anos de chumbo, refugiamo-nos nas leituras e escritas possíveis. Reunimo-nos quando possível, publicamos quando possível. De lá, daqueles tempos, herdamos a mania das reuniões, quase que totalmente inúteis, mas sempre realizáveis. Como um seminário – que vem a ser um amontoado de reuniões da mesma natureza das citadas – recentemente acontecido aqui em Goiânia, reunindo um expressivo número de ativistas culturais, mas com a notável ausência de nomes expressivos da comunidade artística e intelectual da Capital, salvo raras exceções. Do meio literário, sempre tido como de grande número de participantes, apenas três figuras de todo o Estado.


Cumprindo exigências dos  promotores, que se esqueceram de convidar ou convocar instituições como a União Brasileira dos Escritores (a maior e das mais atuantes entre as entidades culturais em Goiás), a Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás e a Academia Goiana de Letras, o trio designou uma moça, que “representava” o fazer literário de uma cidade entre as duas capitais deste Planalto Central, para expor ao plenário uma proposta de trabalho.

Quando soube disso, fiquei meio incrédulo... Como pode? Três escritores apenas para apresentar uma proposta de trabalho com objetivos de... De que mesmo? Não atinei! Mas o que a moça disse aos demais artistas era algo de causar estranheza: ela se valeu da ocasião para contar de seus feitos na cidade que representava no tal encontro que, parece, pretende juntar elementos que justifiquem o esforço de se criar, na esfera do Governo Estadual, uma Secretaria da Cultura (já existiu; um deputado puxa-saco, com sobrenome de líder comunista, conseguiu aprovar na Assembleia, no começo da década de 1990, o fechamento da dita cuja, com a simpatia do governador da época).

A gente sabe... cultura estressa!
A moça contou que seu trabalho consiste em percorrer a cidade numa carroça cheia de livros, “levando cultura” aos munícipes. E que tinha o apoio decidido da prefeita, que a socorre sempre que a égua das letras empaca ou adoece, substituindo o simplório e embrionário cabriolé por uma viatura com motorista.


Gente, isso me envergonha mais que bala perdida! Será que dá filme para concorrer ao Oscar? Afinal, somos hábeis no cinema da subvida, da subserviência e do complexo de vira-lata. 


* * *



10 comentários:

LUIZ CRUZ disse...

Sem comnetários. Maravilhoso. Começei bem o dia...Luiz Antonio Cruz.

Ana Cárita disse...

Luiz:


Sua crônica ficou belíssima.

Começa leve,
termina fortíssima.

Traz lembranças que não deve,
feito coice no osso da pelve.

Ah, todo mundo fosse assim,
meio Elvis/ James Dean!

El relogio, Al di la,

Beçame mucho, Look for a star,

Hymne à l'Amour, Edith Piaf!

Belos poemas que não morrem mais,

Sejam samba de uma nota só,

Jamais eguinha procotó.

“Lá vem o dom Pedrito

Montado no burrico..”


*******************

Na escola da internet eu encontrei

a pérola abaixo. Leia e deleite:

A Carroça dos Poetas

Sérgio Godinho

Arre burro para Loulé
carregado de café
arre burro para Melgaço
carregado de bagaço
arre burro para Viana
carregado de banana
arre burro para Lisboa
carregado com os restos mortais
do Fernando Pessoa
e mais os seus trinta heterónimos
nem vão caber nos Jerónimos

Na carroça dos poetas
segue à solta a poesia
e eu vou dentro a recitar
um poema da minha autoria:

"Meu amor eu gosto tanto
da forma como tu gostas
mas por favor ando buscar
as tuas unhas às minhas costas".

Nota: É assim que se faz literatura?

Abraços

Ana Cárita

Luiz de Aquino disse...

Obrigado, querida amiga e poetisa de ponta Ana Cárita!

Mariana Galizi disse...

cheizesLu, que vexame isso! Parece que o que conduz a cultura no Brasil é estimulado pelos poderes a ser um meio retrógrado, que empaca o desenvolvimento. Vergonha alheia.
É um coice no estômago de toda a nação.

Mara Narciso disse...

Ter vivido tudo isso, essas emoções e perigos todos, imaginava-se um futuro melhor. E agora, o que se vê? De fato é vergonhoso saber que livros são tratados dessa forma.

Fatima Rosa Naves disse...

Ótima crônica,ótimas lembranças.

Não conheço a proposta de biblioteca intinerante referida.

Você escreve muito, é gostoso lê-lo.

Valéria Gomes disse...

Olhe Luiz, eu sou filha dos anos 60.
Meu Pai comprou uma TV, só tinha mais umas em Palmeiras. Então eu assisti ao homem pisando na Lua e chorei porque era, inabitável. Em seguida, 70, nossa casa parecia cinema de tanta gente pra assistir a Copa do México. Eu queri muito ter uma carroça e mesmo que fosse uma égua Pedrez. Eu penso que valeria a pena, se apenas uma pessoa me perguntasse: E o gigante, matou Don Quixote ou morreu? Tive o privilégio, junto com Papai de doar mais de 600 livros para a Biblioteca Municipal e até a última notícia, que tive, estavam jogados em uma sala da UEG de Palmeiras, isso meu amigo, é um coice na Inteligência Cultural, nestes rincões sem fim.

Valéria Gomes disse...

Doma Zizica, minha sogra, 87 anos, sempre que formam uma turma para alfabetização de Idosos, corre (caminha lentamente), para aprender um pouquinho mais. Há uns anos atrás, ela chega da escola derramando felicidade, nos chama a todos, para nos ensinar uma nova palavra que aprendeu: Diz a sábia senhora: - O nome certo é Urubu. Silêncio total. E eu que falei mais de 80 anos, Arubu. Deve ser por isso que nenhum fio meu virô Médico! Um escolheu Direito e o outro Jornalismo. Agora ela já fala Arubu de novo.

Anônimo disse...

Luiz, se voce relata o Fórum de Cultura do Estado de Goiás, eu estava lá. Se essa égua for a égua de Alexânia...Estava presente apenas 4 (quatro) para representar a literatura em Goiás.Eu queria estar nesse grupo, mas decidi representar as culturas populares.
Sentimos falata dos escritores para fortalecimento do Setorial de Livro e Leitura.
A Liteegua é apoiada pela Cida do Gelo

Luiz de Aquino disse...

Desde que este blog foi criado, há pouco mais de cinco anos, encareço aos signatários que assinem suas opiniões, pois é importante sabermos de quem vem o comentário. Por favor, anônimo, diga quem é você.

Daqui por diante, náo publicarei comentários sem assinatura.