Quanto valem os traumas
e as vidas?
e as vidas?
Há poucos dias, e tratei
disso na crônica da semana passada, um jovem de 17 anos faleceu antes de ser
operado por causa de uma fratura de fêmur; o jovem passou por duas unidades de
atendimento e triagem, antes de ser encaminhado ao Hospital Valdomiro Cruz (o
Hugo, Hospital de Urgências de Goiânia); o procedimento cirúrgico foi marcado
para a manhã seguinte, mas o moço morreu de madrugada, com embolia pulmonar.
Na semana seguinte, uma
garota de 16 anos foi acolhida no Hospital de Urgências de Aparecida, o Huapa;
ela tinha fratura dos dois fêmures e também de ambos os braços. Felizmente, foi
tratada a tempo e sobrevive... Mas, convenhamos! Eu tinha 36 anos quando tive
fraturas expostas dos dois ossos da perna esquerda. Sofri muito, tive de ser
operado, tomei antibióticos e fiquei cinco meses com gesso e muletas, depois
bengala por um longo tempo, também.
Como esses dois
adolescentes, sofri um acidente de moto. A diferença: eu era habilitado para
dirigir motocicleta. Esses jovens, não. Ainda não tinham idade para isso.
Pergunto-me, diante desses eventos que modificam profundamente a rotina e as
vidas numa família, o quanto nós, pais, somos responsáveis.
Quem já criou seus filhos
sente-se vitorioso ao vê-los crescidos, responsáveis, com os estudos em bom
nível ou já formados, livres das drogas e produtivos ante seus amados e a
sociedade. Mas o que nos leva a fechar os olhos ante a permissividade? Conheço
pessoas de excelente projeção social que correram os riscos desnecessários de
expor filhos a vícios, desde os festivos drinques até as rodas de maconha,
abrindo as portas de outras escolhas mais graves ainda.
E conheço também os que se
arriscam ou arriscaram a integridade dos filhos liberando-os para o controle de
máquinas como o automóvel e a motocicleta. A partir daí, um tombo ou uma batida
disparam o funcionamento de uma máquina complexa, tudo para salvar uma vida e
fazer de tudo para evitar seqüelas gravíssimas, muitas delas de caráter
irreversível.
As estatísticas dos hospitais
de urgência, em todo o país, dão conta de que as cirurgias por acidentes de
moto atingem até 80% de todos os procedimentos cirúrgicos. Esses números
sustentam os planejamentos oficiais para a distribuição de verbas de Saúde,
exigem procedimentos na formação e na capacitação de profissionais médicos,
enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos, fonoaudiólogos, odontólogos –
enfim, um leque enorme de trabalhadores altamente especializados e motivados
para salvar e curar.
Pergunto-me: os fabricantes
de máquinas mortíferas contribuem para a constituição de fundos de Saúde que
custeiem esses procedimentos (desde as formações, especializações, capacitações
até a mobilidade dos socorristas, do acolhimento no aparelhamento público de
emergência e urgência aos lentos e nem sempre eficazes tratamentos de
fisioterapia)?
Perder um ente querido é
altamente doloroso, seja qual for a causa. Ver um filho ou irmão subitamente
limitado ou mesmo amputado, ou ainda – e pior – condenado por toda a vida a um
leito, em condições que comparamos às dos vegetais, dói na mesma intensidade.
São vidas ceifadas ou interrompidas em seu processo contínuo de
aperfeiçoamento, de aprendizado e de convívio.
E nós, pais permissivos,
procuramos, quase sempre, justificar-nos na busca de culpados – a pessoa que
dirigia o outro veículo (se é o caso), a prefeitura que deixou esquecido o
buraco onde a moto desgovernou-se, os bombeiros ou o Samu, pelo tempo em chegar,
os médicos e atendentes que demoraram, a polícia ou a guarda de trânsito que
deveriam estar no local...
Nós, familiares, não: sempre
somos inocentes e vítimas. Resta-nos a dor da perda ou do novo condicionamento,
e em alguns casos amargamos o remorso de “ter permitido”... Porque muitos entre
nós orgulham-se da precocidade dos filhos, ainda que nosso dever seja o de
dosar a chegada das novidades, graduar o alcance, vencer a ansiedade dos
meninos ante a busca pelo novo. Nós temos permitido que nossos meninos dirijam
e pilotem antes da hora e até se erotizem muito antes do momento – depois,
acusamos nossas meninas pela gravidez inesperada.
E não se pode respeitar a
“iniciativa” de pais que permitem a antecipação de atitudes: um pai que
presenteia um filho com uma moto ou carro antes que o mesmo esteja habilitado
contribui para as conseqüências; e um patrão que emprega um entregador não
habilitado – e, principalmente, menor de idade – é também responsável pelo que
de infausto aconteça.
A dor da família é algo
dramático, sim. Qualquer ser humano, pai ou mãe, ou tios e avós, qualquer de nós
é solidário a essa dor. Só não podemos – nem conseguimos – cobrir o sol com um
tênue véu de cinismo ou hipocrisia. Avisemos a todos os pais, mormente aos
jovens, os pais de crianças, no rumo da prevenção, da dosagem certa para o
desenvolvimento de nossos filhos – afinal, eles são um presente dos céus, mas
cabe-nos um elevado grau de responsabilidade para que cresçam saudáveis, com
segurança e esperança no futuro, mas com fé e respeito.
E a máquina pública,
representada nos Três Poderes, deve agir no sentido de partilhar
responsabilidades. No tocante a motocicletas, é preciso onerar os fabricantes,
que usufruem de elevadíssimos lucros, para que custeiem os traumas gerais de
seus produtos. Se clamamos pelo fim da impunidade, é legítimo que gritemos
também pelas responsabilidades dos
privilegiados.
4 comentários:
Muito bom e útil seu texto. Gosto de ler o que vocês escreve sempre. Maria Lindgren. Mande mais.
Meu querido Luiz,
como sempre acontece, gosto de suas crônicas. Você abre os olhos e alarga a mente,
para ver o cotidiano, nem sempre fácil, da vida humana. A política, a véspera da primavera,
a permissividade dos pais e responsáveis, a saúde pública à beira do caos são um chamado seu
para a reflexão e a tomada de posição dos leitores. Meu Deus, quantas dificuldades e sofrimentos!! Para onde vamos?
Beijo para você.
Maria Helena
Ainda não conhecia essa sua faceta mais para jornalística, Luiz. Bom saber um pouco mais de você. Não sabia desse acidente. A recuperação é lentíssima.
Obrigada por me mostrar em primeira mão.
Ótima noite!
Abraço, Mara
Lúcida crônica desse nosso cotidiano cruel, amigo Luiz Aquino, onde nem sempre os pais são as únicas vítimas.
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