Páginas

quinta-feira, setembro 25, 2014

Quanto valem os traumas e as vidas?


Publicado no Diário da Manhã, Opinião Pública - 25/09/2014.

Quanto valem os traumas
e as vidas?


Há poucos dias, e tratei disso na crônica da semana passada, um jovem de 17 anos faleceu antes de ser operado por causa de uma fratura de fêmur; o jovem passou por duas unidades de atendimento e triagem, antes de ser encaminhado ao Hospital Valdomiro Cruz (o Hugo, Hospital de Urgências de Goiânia); o procedimento cirúrgico foi marcado para a manhã seguinte, mas o moço morreu de madrugada, com embolia pulmonar.

Na semana seguinte, uma garota de 16 anos foi acolhida no Hospital de Urgências de Aparecida, o Huapa; ela tinha fratura dos dois fêmures e também de ambos os braços. Felizmente, foi tratada a tempo e sobrevive... Mas, convenhamos! Eu tinha 36 anos quando tive fraturas expostas dos dois ossos da perna esquerda. Sofri muito, tive de ser operado, tomei antibióticos e fiquei cinco meses com gesso e muletas, depois bengala por um longo tempo, também.

Como esses dois adolescentes, sofri um acidente de moto. A diferença: eu era habilitado para dirigir motocicleta. Esses jovens, não. Ainda não tinham idade para isso. Pergunto-me, diante desses eventos que modificam profundamente a rotina e as vidas numa família, o quanto nós, pais, somos responsáveis.

Quem já criou seus filhos sente-se vitorioso ao vê-los crescidos, responsáveis, com os estudos em bom nível ou já formados, livres das drogas e produtivos ante seus amados e a sociedade. Mas o que nos leva a fechar os olhos ante a permissividade? Conheço pessoas de excelente projeção social que correram os riscos desnecessários de expor filhos a vícios, desde os festivos drinques até as rodas de maconha, abrindo as portas de outras escolhas mais graves ainda.

E conheço também os que se arriscam ou arriscaram a integridade dos filhos liberando-os para o controle de máquinas como o automóvel e a motocicleta. A partir daí, um tombo ou uma batida disparam o funcionamento de uma máquina complexa, tudo para salvar uma vida e fazer de tudo para evitar seqüelas gravíssimas, muitas delas de caráter irreversível.

As estatísticas dos hospitais de urgência, em todo o país, dão conta de que as cirurgias por acidentes de moto atingem até 80% de todos os procedimentos cirúrgicos. Esses números sustentam os planejamentos oficiais para a distribuição de verbas de Saúde, exigem procedimentos na formação e na capacitação de profissionais médicos, enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos, fonoaudiólogos, odontólogos – enfim, um leque enorme de trabalhadores altamente especializados e motivados para salvar e curar.

Pergunto-me: os fabricantes de máquinas mortíferas contribuem para a constituição de fundos de Saúde que custeiem esses procedimentos (desde as formações, especializações, capacitações até a mobilidade dos socorristas, do acolhimento no aparelhamento público de emergência e urgência aos lentos e nem sempre eficazes tratamentos de fisioterapia)?

Perder um ente querido é altamente doloroso, seja qual for a causa. Ver um filho ou irmão subitamente limitado ou mesmo amputado, ou ainda – e pior – condenado por toda a vida a um leito, em condições que comparamos às dos vegetais, dói na mesma intensidade. São vidas ceifadas ou interrompidas em seu processo contínuo de aperfeiçoamento, de aprendizado e de convívio.

E nós, pais permissivos, procuramos, quase sempre, justificar-nos na busca de culpados – a pessoa que dirigia o outro veículo (se é o caso), a prefeitura que deixou esquecido o buraco onde a moto desgovernou-se, os bombeiros ou o Samu, pelo tempo em chegar, os médicos e atendentes que demoraram, a polícia ou a guarda de trânsito que deveriam estar no local...

Nós, familiares, não: sempre somos inocentes e vítimas. Resta-nos a dor da perda ou do novo condicionamento, e em alguns casos amargamos o remorso de “ter permitido”... Porque muitos entre nós orgulham-se da precocidade dos filhos, ainda que nosso dever seja o de dosar a chegada das novidades, graduar o alcance, vencer a ansiedade dos meninos ante a busca pelo novo. Nós temos permitido que nossos meninos dirijam e pilotem antes da hora e até se erotizem muito antes do momento – depois, acusamos nossas meninas pela gravidez inesperada.

E não se pode respeitar a “iniciativa” de pais que permitem a antecipação de atitudes: um pai que presenteia um filho com uma moto ou carro antes que o mesmo esteja habilitado contribui para as conseqüências; e um patrão que emprega um entregador não habilitado – e, principalmente, menor de idade – é também responsável pelo que de infausto aconteça.

A dor da família é algo dramático, sim. Qualquer ser humano, pai ou mãe, ou tios e avós, qualquer de nós é solidário a essa dor. Só não podemos – nem conseguimos – cobrir o sol com um tênue véu de cinismo ou hipocrisia. Avisemos a todos os pais, mormente aos jovens, os pais de crianças, no rumo da prevenção, da dosagem certa para o desenvolvimento de nossos filhos – afinal, eles são um presente dos céus, mas cabe-nos um elevado grau de responsabilidade para que cresçam saudáveis, com segurança e esperança no futuro, mas com fé e respeito.

E a máquina pública, representada nos Três Poderes, deve agir no sentido de partilhar responsabilidades. No tocante a motocicletas, é preciso onerar os fabricantes, que usufruem de elevadíssimos lucros, para que custeiem os traumas gerais de seus produtos. Se clamamos pelo fim da impunidade, é legítimo que gritemos também pelas responsabilidades  dos privilegiados.

  * * *


4 comentários:

Maria Lindgren disse...

Muito bom e útil seu texto. Gosto de ler o que vocês escreve sempre. Maria Lindgren. Mande mais.

Maria Helena Chein disse...

Meu querido Luiz,
como sempre acontece, gosto de suas crônicas. Você abre os olhos e alarga a mente,
para ver o cotidiano, nem sempre fácil, da vida humana. A política, a véspera da primavera,
a permissividade dos pais e responsáveis, a saúde pública à beira do caos são um chamado seu
para a reflexão e a tomada de posição dos leitores. Meu Deus, quantas dificuldades e sofrimentos!! Para onde vamos?
Beijo para você.
Maria Helena

Mara Narciso (médica e jornalista) disse...


Ainda não conhecia essa sua faceta mais para jornalística, Luiz. Bom saber um pouco mais de você. Não sabia desse acidente. A recuperação é lentíssima.
Obrigada por me mostrar em primeira mão.
Ótima noite!
Abraço, Mara

Sônia Elizabeth disse...

Lúcida crônica desse nosso cotidiano cruel, amigo Luiz Aquino, onde nem sempre os pais são as únicas vítimas.