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domingo, fevereiro 01, 2015

Crônica de Mara Narciso

Minhas honras à visitante:

Transcrevo, a seguir, belíssima crônica da mineira (de Montes Claros) Mara Narciso, médica e jornalista, acerca de um dos mais importantes e dramáticos temas da atualidade, com comentário meu ao fim.

Mara Narciso - médica, escritora e jornalista.

“Oh, Sol, tu que és tão forte, derrete a neve que prende o meu pezinho”!
Mara Narciso

            Eram 14 horas, e próxima da Santa Casa de Montes Claros, vim a pé pela Praça Honorato Alves e entrei na Avenida Coronel Prates. A temperatura de 37 graus à sombra, num janeiro atípico, depois de uma espera de dois meses pela chuva, que não veio, fazia tremular o asfalto. Ri mentalmente de uma frase que costumo dizer: “adoro o calor. Quando o asfalto está tremendo, aí eu estou feliz”. Há muito me cansei de pedir chuva, pela inutilidade do esforço. Não sei se morreremos fritos, assados ou esturricados, mas, ao atravessar a rua, vi, pelo ar de desalento dos transeuntes, andando como almas no inferno, que o fim estava próximo. E, devido ao calor de deserto, boca e olhos secos, e uma sensação de desmaio, contraditoriamente, lembrei-me de um disquinho de histórias infantis, que tinha na casa da minha tia Ninha, e que contava do desespero da formiga, que iria morrer congelada, caso o sol não a esquentasse e a ajudasse a soltar-se da neve, que prendia seu pé.
            Como dizia uma irmã da minha avó, Tia Juracy: “Deus soube somar, subtrair, e multiplicar, mas não soube dividir”. Parece que não, embora, ela mesma fizesse um adendo: “todos estão satisfeitos com a inteligência que receberam, pois não vejo ninguém reclamar de que tenha recebido pouca”. Mas o calor deixa a cabeça fraca, surgindo delírios. E olha que ainda temos água. Pensar em sua total extinção é bom para economizar, mas imaginar a seca final aumentam a sede e a sensação de calor. “Me dê um copo d’água tenho sede/ e essa sede pode me matar// Meu coração só pede um copo d’água/ e os meus olhos pedem o seu olhar//”. (Gilberto Gil)
            Há quem ache que seja exagero e não mudou nada no seu consumo, continuando a lavar quintal, jardim, muros, passeios, ruas e carros com mangueira aberta a ponto de fazer lagoas no meio da rua. Não vou me surpreender quando alguém mais consciente quanto à água, mas inconsciente quanto às leis, agredir fisicamente quem esteja jogando água fora. Mesmo que seja água de cisterna – devido à chuva inconstante, muita gente tem cisterna em casa, mas elas estão secas, com os motores de fora -, ou poços artesianos, que já estão secando. A água subterrânea é de toda a comunidade, e também não pode ser desperdiçada. Há populações que se abasteciam de poço e já estão recebendo água em caminhão-pipa.
            Onde lavo o carro – espacei a lavação para a cada 10 dias, sendo que antes era a cada sete dias, tem cisterna, mas, desde que não choveu em dezembro, o dono mandou reduzir o consumo de água, usando balde no caso de carros mais limpos, e jato sob pressão apenas quando o carro estiver sujo de barro (o que quase não acontece, já que não chove). Ainda assim, está preocupado, pois não tem água para esperar o possível período chuvoso, que deverá começar em outubro/novembro deste ano, já que aqui, no Polígono das Secas costuma chover um mês depois do começo da primavera até março. O restante do tempo não chove. Fevereiro começando, há esperança de que caia chuva neste e no próximo mês.
            Como morei por nove anos no Bairro Morada do Parque, parte alta e ponta de rede, sentíamos na pele a falta de água, que ficava sem aparecer por mais de 48 horas. A companhia enviava caminhões-pipa, que iam enchendo as caixas casa a casa. Na nossa vez era mais fácil e rápido, pois tínhamos um reservatório de mil litros no chão do jardim, com uma bomba submersa que jogava o conteúdo na caixa lá de cima. Assim, aprendemos a estocar e a economizar água. E o que as pessoas estão aprendendo agora, desde1987 a gente já fazia no tempo seco. Simultaneamente ao nosso desenvolvimento de habilidade em lidar com a escassez, pessoas que moravam na parte baixa do bairro e em cujas torneiras corria água o dia todo, não se constrangiam em jogar um rio fora todos os dias.
            É preciso poupar cada gota, pois poderá fazer falta adiante. Ainda assim, há os que insistem em ignorar o apelo das autoridades, as quais usam palavras como restrição hídrica, momento trágico, expectativa do caos e situação gravíssima. O governo, que costuma ocultar as reais situações com o intuito de não alarmar a população, já usa esses termos fortes. Imagino que saibam o que dizem, sendo melhor obedecer-lhes. Muito em breve estaremos dessalinizando a água do mar, ou reutilizando a própria urina, como foi mostrado num filme de ficção científica, de 1994, chamado "Waterworld", com Kevin Costner. Espero não ter de ver isso. Conviver com o Rio São Francisco seco, já foi demais para mim.
(31 de janeiro de 2015)
  









Minha querida Mara,

É raro eu não me surpreender com suas crônicas. Recentemente, Brasigóis Felício - poeta e cronista, meu confrade (e um dos melhores cronistas deste país) - escreveu o que sempre notamos, ele e eu: são muitos os escritores, ficcionistas e poetas, que se esforçam por produzir crônicas e não o conseguem. Recordei, de imediato, as nossas conversas quando, na década de 80, trabalhávamos juntos na Assessoria de Imprensa da Prefeitura de Goiânia. Eu lia uma crônica em algum dos nossos jornais (eram quatro os diários goianienses daquele tempo) e lhas mostrava. O poeta lia até o final (nunca o vi fazer como eu, desistir de um texto a meio) e arrematava minha observação ou consulta com uma mínima frase: "Falta molho". 

Quando recepcionei Leda Selma na AGL, lá pelo ano 2000 (ou terá sido 2001, não estou certo), defini que ninguém é bom cronista se não for também poeta; a isto, Luiz Augusto Sampaio, um dos nosso bons cronistas também, reclamou: "Eu nunca fiz um verso" - e respondi-lhe que basta querer, porque competência ele tem.

Bem, quero chegar ao ponto: seus textos mais recentes têm brotado com as indispensáveis nuanças de poesia esparsadas na prosa boa de se ler - a prosa que "segura o leitor pelo pescoço até a última palavra", no dizer de José Mendonça Teles. Esta, a de hoje, expõe sua alma poeta desde o título. É muito bom buscar socorro na memória da infância - essa memória que não nos deixa esquecer que todos nascemos poetas, mas a maioria se esquece disso e endurece o coração à medida que soma anos (ao contrário do que disse sua tia, não é Deus que não soube dividir, somos nós que desprezamos o somar).

Meu beijo de carinho e de parabéns por este texto. Sem água, não apenas viveremos muito mal (ou não viveremos mais), como nos privaremos de tudo o que embeleza os cenários - árvores, jardins, lagos, chuva, rios, geleiras, mares, cascatas, nuvens, arco-íris, pele bonita, olhares ricos e cheios de brilho, banheiras de nos enfeitar a luxúria, mãos macias para os carinhos, o gelo a tilintar nos copos em brinde, o sabor infantil dos sorvetes e picolés, a ternura boêmia de um copo de chope, as ricas cores e os inefáveis sabores das frutas - enfim, tudo o que temos por vida.
  
Luiz de Aquino

2 comentários:

Mara Narciso disse...

Agradeço cada palavra, Luiz. Como respondi-lhe por e-mail, fiquei lisonjeada e na sequência encabulada, pois não me imaginava merecedora de tantas palavras bonitas. É uma honra grande para mim estar no seu blog.Muito obrigada pelo comentário e divulgação.

Ana Maria Taveira Miguel disse...

Luiz,adorei sua crônica em que fala de seu encantamento do então jovem escritor,você,pela obra de J. Veiga e, posteriormente, seu empenho em colocá- lá em
lugar digno de seu valor.Iniciativas assim é que impedem o ostracismo a que são condenados excelentes artistas , deixando que se transformem, com o passar do tempo em apenas retratos na parede ou o nome legado a alguma escola ou praça.