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sábado, fevereiro 21, 2015

O mico e a vergonha na cara


Sebastião Nery, jornalista e catador de histórias do folclore político.



O mico e a vergonha na cara


Feliz novo ano, meus amigos! Sim, que o Ano-Novo (escrito assim) é aquele Dia da Confraternização Universal, ou 1º de janeiro. Já convencionamos, em nossa pátria, que o ano de verdade só começa após o Carnaval. Mas... Quarta-feira de Cinzas é dia de ressaca e meio-expediente, quinta e sexta são dois dias p’ra valer na semana inteira... Então, que o ano comece, de verdade, na segunda-feira seguinte à farra momesca.

Quarta-feira de Cinzas foi o dia de saber quem foi a escola campeã no samba carioca. Deu Beija-Flor de Nilópolis. Quer dizer, nem carioca a Beija-Flor é – ela é da Baixada Fluminense, ou seja, está sediada além dos limites da Cidade Maravilhosa, a que tem por gentílico a decantada e declamada palavra “carioca”.

E antes ainda da votação, a imprensa já dava notas ou informes sobre uma verba de 10 milhões de reais advindos da Guiné Equatorial, o país que foi tema do enredo da escola de Neguinho. O ditador que comanda os destinos de um dos mais pobres países do mundo negou, atribuiu a “empresas brasileiras” a montagem da tal verba – e essas empresas são, coincidentemente, algumas das envolvidas nos escândalos denunciados na Operação Laja-Jato da Polícia Federal.

Alguns com maior zelo moralista apontaram os desvios de conduta de inúmeras outras agremiações sambistas: chefes de milícias, traficantes, contraventores (mas estes são do passado) e outros meliantes sustentam o luxo instituído por Joãozinho Trinta (ele escrevia Joãosinho e a imprensa cega e mal alfabetizada respeitava a transgressão gramatical). O samba, por si, passou a ser artigo de segundo plano, ou apenas pano-de-fundo.

No Facebook, muitas vozes se ergueram, algumas em defesa dos que buscam recursos em ambientes escusos, como o do tráfico e dos chantagistas milicianos. E o argumento escuda-se no fato de que “muitos políticos” ou “a maioria deles” elege-se com evidentes caixas-dois formados com essas verbas inconfessáveis – em troca, é claro, a prática da proteção ao submundo.

Diante de tudo isso, visitei minhas estantes, procurei e localizei um enorme volume de Sebastião Nery – Folclore Político (este, com 1.950 histórias). E fui à historinha de número 681 (pág. 227), literalmente assim:

Folclore Político (1.950 histórias) - 2002
“Adauto Cardoso, Carlos Lacerda e Ary Barroso eram a linha de frente da bancada da UDN na Câmara de Vereadores do Rio, logo depois da derrubada da ditadura Vargas. Mais atuantes, só a banca do Partido Comunista, liderada por Agildo Barata.

Carlos Lacerda, político e jornalista.
Aparece lá, para uma prestação de contas, o secretário da Saúde do Município, Fioravante Di Piero, médico ilustre, muito rico, pedante, vaidoso. Estava na tribuna, Adauto aparteia:
– Pela brilhante exposição de V. Exa., senhor secretário, vejo que os problemas de saúde do município estão sendo enfrentados com um critério inaplegível.

O Dr. Fioravante Di Piero, no centro. Ele festejou 100 anos há poucos dias.
– E não poderia ser outro o critério, senhor vereador.
Lacerda se mete:
– Nobre vereador Adauto Cardoso, no batente diário da profissão convivo diariamente com as palavras. E nunca ouvi esse adjetivo ‘inaplegível’. O que significa?
– Não sei, acabei de inventá-lo agora. Mas o senhor secretário, que o confirmou, deve saber.
Fioravante Di Piero desceu da tribuna, foi para casa, mandou uma carta de demissão ao prefeito. E desapareceu inaplegivelmente”.


Adauto Cardoso: "Inaplegível^.


Pois é! Já não se fazem mais homens (de ambos os gêneros) como antigamente. Por muito mais, algumas senhoras permanecem agarradas a seus cargos, ainda que apanhadas em flagrantes piores – como mentiras, omissões e insinuantes envolvimentos em escândalos. Por muito mais, Renan Calheiros continua cinicamente senador, reelegeu-se presidente do Senado e implantou cabelos com os nossos impostos. E defensores do governo, bem como opositores os mais radicais, vociferam aos quatro ventos em defesa de seus líderes escroques, sem constrangimentos.

Já não há mais políticos com apego à própria dignidade pessoal, como os que se demitiam e sumiam da mídia quando flagrados num mico.


*.*.*



Luiz de Aquino é jornalista e escritor, membro da Academia Goiana de Letras.

4 comentários:

Sueli Soares disse...

Não podemos negar que "inaplegivelmente" é uma invencionice que hoje faria sucesso entre os impressionáveis eleitores de candidatos que levam a corrupção às últimas consequências. Dignidade deveria ser uma qualidade de políticos, raríssimos hoje. Quem consegue enxergar um palmo à frente do próprio nariz indigna-se diante de tantos "inaplegíveis" politiqueiros. Alguns meses antes das eleições, numa rede social, manifestei crescente preocupação com os rumos da carroça. Como delicada que sou, reafirmo que os burros, com seus antolhos, seguem atrás.

Mara Narciso disse...

Todos nós, diante de tantos mal-feitos, deveríamos andar de cabeça baixa, imersos em nossas próprias análises. Os fatos andam desabonadores, e muitos de nós temos culpa indireta.Deveríamos parar de fazer vistas grossas e ouvidos moucos. O filho feio é nosso também. Quantas vezes fugiríamos, se fosse possível,para não sermos alcançados por taxas e leis? Que cada um faça seu exame de consciência e não se ache uma vestal. Poucos são de verdade.

Ana Maria Taveira Miguel disse...

Luiz de Aquino, você foi buscar em seus arquivos essa verdadeira piada do político que inventa um neologismo em súbito ataque de pedantismo sem mesmo saber-lhe o sentido que tão pronto nasceu, pronto morreu. E as mazelas políticas que você menciona com humor e com gosto de dejà-vu, mostrando que mudam-se os personagens mas o enredo é o mesmo. Políticos sem o menor escrúpulo pregando e
provando que roubar é preciso e para ser "o cara" é necessário esperteza,
enquanto via na avenida os desfiles pela tv, sem querer comparava os imensos carros alegóricos com o Brasil gigantesco, se arrastando lento,com gente pobre com a cara da riqueza numa euforia desmedida a dizer ao mundo"ei, você aí, nós temos bananas"! O estrangeiro simplesmente fica atônito: Ora, este povo não tem problemas! Dinheiro no bolso e saúde pra dar e vender...
Quando o último tamborim cessa suas batidas e o derradeiro trompete geme seu grito final o Brasil fantasiado de riqueza arrasta os tamancos pelas ruas na certeza de que a água minguou a luz encareceu, o gaz apagou e o ônibus não vem porque gasolina não tem. E agora, Brasil? E agora eu e agora,você?

Nadia Maria Vinhas disse...

Mudam os contraventores , os enredos, os políticos e suas sujas campanhas patrocinadas pela corrupção, e tudo rola solto ao som dos tamborins, e lá vai nessa avenida que é o Brasil esse desfile incansável de barbaridades, as arquibancadas sempre lotadas, e o povo olhando passivamente os desfiles de horrores, um trazendo "alegrias" e o outro mostrando a nossa incapacidade de mudar as regras, e assim vai, carnaval e política misturados em um louco samba enredo e no final só cantando, Chico já sabia... fez seu protesto fantasiado, pois a ditadura não perdoaria...então só nos resta sambar...


Vai passar
(Chico Buarque)

Vai passar
Nessa avenida um samba popular
Cada paralelepípedo
Da velha cidade
Essa noite vai
Se arrepiar
Ao lembrar
Que aqui passaram sambas imortais
Que aqui sangraram pelos nossos pés
Que aqui sambaram nossos ancestrais

Num tempo
Página infeliz da nossa história
Passagem desbotada na memória
Das nossas novas gerações
Dormia
A nossa pátria mãe tão distraída
Sem perceber que era subtraída
Em tenebrosas transações

Seus filhos
Erravam cegos pelo continente
Levavam pedras feito penitentes
Erguendo estranhas catedrais
E um dia, afinal
Tinham direito a uma alegria fugaz
Uma ofegante epidemia
Que se chamava carnaval
O carnaval, o carnaval
(Vai passar)

Palmas pra ala dos barões famintos
O bloco dos napoleões retintos
E os pigmeus do bulevar
Meu Deus, vem olhar
Vem ver de perto uma cidade a cantar
A evolução da liberdade
Até o dia clarear

Ai, que vida boa, olerê
Ai, que vida boa, olará
O estandarte do sanatório geral vai passar
Ai, que vida boa, olerê
Ai, que vida boa, olará
O estandarte do sanatório geral
Vai passar