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terça-feira, junho 20, 2006

Proseando com o poeta

Salomão Sousa escreveu um belo poema, entre tantos outros belos, sob o título “Dar-se aos pregos e às léguas”. Deliciei-me das fincadas e andanças do vate da histórica cidade de Bonfim (que o mau-gosto de uns poucos, há mais de meio século, transmudou em Silvânia, sem que a bucólica cidade perdesse o encanto). Ele encerrou o poema com essa estrofe:

“...
perder-se para nascer

nas flores e nos olhos da terra
não ser o ferrolho inchado
o caruncho na madeira das íris

Falei-lhe do meu encanto, e ele retrucou, em mensagem fraternal: “As nossas viagens são as mesmas, com as mesmas íris e o mesmo sol, o mesmo terreiro de chão goiano. O difícil, para nós, é abrir porteiras para fora de nosso rincão. Vamos manter viva a nossa infância, senão perdemos a nossa rebeldia”.


Perdemos, não, poet’irmão! Não a perdemos, pois exercemos essa teimosia de menino birrento, daqueles a quem os castigos da sobremesa não atingem, porque havia os quintais de múltiplas frutas, nem o cerceamento da liberdade por algumas horas, porque os córregos da meninice estavam ali, “de grito” (*); a toxina dos defensivos ainda não exterminara as piabas que colhíamos em anzóis miúdos, em linhas curtas de varas de bambu. Nosso grito de pirralhos embirrados ecoa não no espaço entre paredões, mas na lonjura do tempo que enevoa nossos cabelos e esturrica nossas peles.

E que revéis, somos nós! Crescemos sob o tacão de um regime duro e cruel, mas não esmorecemos; não nos dobramos, como os caniços que nos valiam por varas de pesca, mas não enraizamos tanto que a ventania nos arrancasse do chão benfazejo. Altivos e livres, fechamo-nos por horas em leituras perigosas, mas capazes de nos fazer cidadãos. Cidadãos poetas, porque sem poesia não há liberdade (que o digam Agostinho, de Angola; José Martí, de Cuba; Federico G. Lorca, o espanhol; e Castro Alves, o nosso).

Vimos Godoy Garcia, José Décio Filho, Ieda Schmaltz e Afonso Félix de Sousa a gritar por nossa gente ante o arbítrio; vimos José J. Veiga e Bernardo Elis a prosear coragem na escuridão ante as idéias não permitidas. Deles herdamos a bússola dos inquietos, dos insatisfeitos e insurretos.

Temos sangue, Salomão, para a justiça decantada, sonhada e mal exercida; sangue que tinge nossos solos e põe sal no nosso suor de andarilhos das letras. Deixamos que os dias polvilhem de lembranças nossas almas doces e ingênuas, mas bravas o bastante para não se curvar. Temos as cores das areias da Serra Dourada, o vigor das pastagens na vertente do Piracanjuba e o calor termal da Serra de Caldas, acalentado em serenatas de Pirenópolis e dourado de pôr-do-sol de qualquer paragem Goiás. Comemos pequi e genipapo, ingá e guapeva; bebemos cachaça quilombola; dançamos pagode de roça, dançamos catira e, se deixarem...

Bem, se deixarem, contamos histórias de medo ao fogo do borralho, em noites de chuva. Mas não deixamos, não mesmo, de cantar poesia. Como não se fazer poeta sob o céu deste Planalto do cerrado, siô?



(*)Nota do autor:. “De grito”: expressão do sul de Goiás para dizer “é logo ali”.

11 comentários:

Anônimo disse...

"...contamos histórias de medo ao fogo do borralho, em noites de chuva."
AVANTE, MEU POETA! MISTURE OS 4 ELEMENTOS E FAÇA A ALQUIMIA SAGRADA DA POESIA!!!

BEIJOS EM SEU CORAÇÃO-POESIA!!!
LEDA MORGANA

Anônimo disse...

Lindo, doce, suave, forte! prosa em verso. Estilo favorito da leitora submissa a arte do poeta. Que faz o mundo ficar mais belo, em razão do amável olhar do artesão da palavra.

Anônimo disse...

Lindo, doce, suave, forte! prosa em verso. Estilo favorito da leitora submissa a arte do poeta. Que faz o mundo ficar mais belo, em razão do amável olhar do artesão da palavra.

Anônimo disse...

Amigo Luiz, não tenho costume com este tipo de leitura, mas confesso que estou maravilhado. Do dia que fomos a Corumbá e recebi seu e-mail lí algumas de suas crônicas e identifiquei muito de minha vida, percebi que estou ficando saudosista. Parabens pelos seus escritos.

Grande abraço.

Ronaldo Veiga

Anônimo disse...

Luiz, como ficou bom o seu proseado com outro poeta, ficou belo, gostoso de ler, e você tem o poder de transformar as palavras em verdadeiras obras de arte!

Beijos, felicidades, prósperidade, e sucesso sempre!

L.G.F

Anônimo disse...

Amei !
Poesia em forma de prosa !!!
beijos
Silvia

Anônimo disse...

Grande amigo cronista, poeta e escritor, um dos mais lúcidos, inteligentes e criativos de Goiás - na minha modesta opinião -, fui transportado lá para as bandas da minha pequena Bambuí (Oeste de Minas Gerais, junto à Serra da Canastra). Que texto instigante é esse que vc escreveu. Que diálogo pertinente. Que prosa é essa!? Eis o tipo de texto que faz a gente viajar no tempo. De volta, temos uma ligeira sensação - forte - de tempo bem vivido, bem nascido, bem instalado em nossas eternas histórias. Um abração do amigo jornalista e escritor josealoisebahiabhzmg (josealoise@terra.com.br)... ps: morei uma época em Cuba. Visitei o panteão de José Martí. Grande herói cubano e latino-americano... Martí e Tiradentes é uma dupla do C...

Salomão Sousa disse...

Tô falando que precismaos nos encontrar face do face!!!! Principalmente para lhe passar o livro novo, Ruínas ao sol! Estou aqui feliz com o diálogo de sua crônica, parecendo bem-te-vi em dia de tanajura!

E.R.L. disse...

Luiz, passei por aqui.
Curti o blog.
Virei sempre.
beijos
Estrê

Herondes Cezar disse...

Amigo Luiz, com esse texto emocionado você tocou fundo no coração de todo goiano que nasceu no interior e teve uma infância plena das boas coisas da nossa terra. Esse rio Piracanjuba que corta o município de Silvânia é o mesmo em que eu, tamaninho, aprendi a pescar da forma que você descreve. A casa onde nasci dista dele "de grito". E dele, minha cidade natal herdou o nome.

Luiz de Aquino disse...

Esta crônica está publicada no jornal Tribuna do Planalto, de Goiânia, edição de 12/08/06, pág. 3 do primeiro caderno. O endereço é http://www.tribunadoplanalto.com.br/modules.php?name=News&file=article&sid=1693.