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domingo, setembro 28, 2008

Reserva de Mercado

Reserva de Mercado


Pré-texto: Alguns leitores interpelam-me sobre o que falei de Vilma Martins, a seqüestradora de crianças que conquistou, apesar de suas peraltices, o direito ao “regime aberto”. Deixei claro que não tenho que criticar ações da Justiça, mas incomodou-me vê-la festejar, em lugar público, com atitudes anti-sociais, em evidente intenção de agredir a sociedade. Mas dou a mão à palmatória: não se poderia esperar muita coisa de quem tem o próprio nome constituído daquelas sílabas.
Esqueçamos a seqüestradora de bebês. Afinal, ela jura que é inocente e que até está escrevendo um livro... Certamente, esse livro será publicado e terá boa venda. Afinal, a sociedade é feita de muitos ingredientes e os sociólogos dizem, não sei se como regra ou como piada, que todo malandro tem o apoio de aproximadamente 35% de sua comunidade. Apenas não a chamem de escritora; esse título deve permanecer entre os grandes seres da Humanidade que transformaram clavas, macetes, espadas e canhões em palavras e fazem, portanto, jus aos louros de heróis. Até porque, assim deve se entender hoje, heróis são pessoas que pugnam por grandes causas e, principalmente, destacam-se por defendê-las sem derramar sangue inocente.
Meu herói de hoje é um escritor. E goiano. E de Morrinhos, cidade vizinha de minha Caldas Novas. Falo de Alaor Barbosa, autor de um montão de coisa boas e belas construídas com os tijolos das letras, juntadas com a argamassa dos sentidos e revestidas com a mais fina película dos sentimentos. Aprendi a admirá-lo há mais de trinta anos, nas reuniões das segundas-feiras na União Brasileira de Escritores de Goiás. Homem de pouca fala, capaz de mobilizar atenções quando se expressa, pois que o faz com síntese e propriedade. Jamais ouvi dele, eu ou qualquer outro, palavras de maledicência ou de vocação negativa. Intelectual disciplinado e competente, dedica longas horas do dia à leitura e outras tantas, penso que em menor escala, à escrita (tal como no que toca a som: ouve mais do que fala e, por isso, tende a dominar-se pela razão, sem perda do sentimento).
Encontro na Internet referências desagradáveis: Alaor vem de publicar uma excelente biografia de um de seus ídolos: João Guimarães Rosa (vale registrar pelo menos um outro herói dele: Monteiro Lobato). Pois o fato de o nosso confrade e conterrâneo admirar o autor de tantas pérolas literárias causou desconforto. Ele foi alvo de processo movido pela filha de Rosa, Vilma (coincidência, apenas; esta não tem a vileza nem a maldade de sua xará goiana), e a Justiça do Rio de Janeiro concluiu por proibir a comercialização de Sinfonia de Minas Gerais – a vida e a literatura de João Guimarães Rosa, em todo o país.
É bonito ver a família defender fervorosamente a memória e os bens de seus mortos. Feio é transformar essa defesa em ataques injustificados. É que Vilma Guimarães Rosa, no afã de justificar sua ação, declarou: “A única biógrafa do papai sou eu. Ninguém pode escrever uma biografia sem o consentimento das filhas, herdeiras do nome e da imagem de Guimarães Rosa”. E, numa entrevista a “O Estado de Minas”, disse, de Alaor Barbosa: “Ele cometeu um crime. Copiou trechos inteiros do meu livro, Relembramentos”.
Triste: Alaor não cometeu crime algum. O que ele fez foi exaltar, com méritos, a figura e o talento de Guimarães Rosa, a ponto de ser criticado por alguns especialistas por ter feito um livro “que só contém elogios”. Mas a ação judicial aconteceu, a Justiça fluminense repetiu o que se deu, em outra ocasião, com uma biografia (igualmente laudatória) do cantor Roberto Carlos.
É lamentável! Tanto livro inútil, tanto papel gasto com falsa literatura, tantas árvores derrubadas para se imprimir porcaria, e a Justiça questiona, no rigor de suas interpretações, a validade de uma obra rica e importante, só porque, parece-me, a filha-autora reserva a si o direito de falar sobre o pai famoso.
Bem: o livro existe. Essa proibição pode não ser eterna, pois o tempo cura tudo. Mas o incidente deixa-me a questionar: desde quando um homem público deve ter sua vida funcional blindada dessa forma? Outra coisa: começo a pensar que não devia haver herdeiros para direitos autorais. Afinal, o talento e a autoria são nominais e intransferíveis, pois se referem a dons divinos.


P. S. - Desculpem-me todas as Vilmas, certamente pessoas de bem. Mas a seqüestradora de bebês não merece de mim outra comparação, daí esse trocadilho terrível em que realcei as sílabas vil-má.

2 comentários:

Mara Narciso disse...

Defender posições tem seu preço, algumas vezes bastante caro. Assim como Vilma tem o direito de ir e vir, você, Luiz de Aquino, tem o direito de dizer que não gosta disso. Do mesmo modo Alaor pode escrever e a filha de Guimarães Rosa pode reclamar. O lamentável, é que, nos dois casos, a população é que saiu perdendo.

Sueli Catão disse...

Luiz,
discordo da figura jurídica da progressão da pena. As penas deveriam ser cumpridas in totum.
Mas até a lei ser modificada, cumpra-se a lei.
E no caso narrado a lei estava sendo rasgada. Vima não está livre. Ela cumpre a pena de uma forma diferenciada. Que não permite sair à noite, etc e tal. E por este motivo deveria voltar pra prisão fechada.