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terça-feira, agosto 02, 2011

“Não se entra duas vezes no mesmo rio”

Na última sexta-feira, 29/07/2011, o jornalista Batiasta Custódio , editor do Diário da Manhã, publicou um   libelo  que deve ser  lido  por todos os que militam na imprensa, na política, no ensino... Enfim,  nas atividades ligadas às relaçoes  humanas.  Seu título:  Canção sozinha à liberdade.  E é sob o efeito de sua leitura que publiquei, nesta data, no mesmo  DM (caderno Opinião Pública), o artigo a seguir:  


“Não se entra duas 
vezes no mesmo rio”



Lendo Canção Sozinha à Liberdade, exerci uma viagem dessas que qualquer de nós pode e deve fazer sempre que possível, ou necessário, sem parecer saudosista ou egoísta, que o sufixo “ista” (como “ismo”) há de ser medido para não nos levar ao incurso da auto-idolatria, no egoísmo. Há que se fazer então altruísta e não inserir o ofício jornalista na lista dos indesejáveis...


É complicado generalizar! Melhor é viajar dentro de nós, nos meandros da memória, com o conforto do que pensamos ser auto-conhecimento, pois percorremos lembranças como uma criança corre pelos corredores e escadas de um velho casarão, segura como se segurasse a mão do pai. Mas o tempo, que mais parece um livro que se renova a cada minuto, ensina-nos a aprender em silêncio, na alegria da solidão, ou melhor, na companhia de nós próprios.


Gosto de lembrar um ensinamento de Heráclito, aquele do rio. “Heráclito de Éfeso. Era homem de sentimentos elevados, orgulhoso e cheio de desprezo pelos outros" (achei na Wikipédia). “Não se pode entrar duas vezes no mesmo rio” – teria escrito Heráclito. Não gosto dessa construção “teria escrito”, e forcei-me a usá-la para me colocar no lugar dos colegas jornalistas que chamam de suspeito um sujeito que cometeu, indiscutivelmente, um crime; ele foi visto e identificado por testemunhas, aparece com nitidez nas câmeras de segurança – aparato indispensável na vida atual, tanto quanto os rios o eram há anos, séculos, milênios... Como na época de Heráclito, ou seja, há vinte e cinco séculos! Cabe ao juiz definir se o sujeito que invadiu, agrediu, atirou várias vezes, feriu e matou pode vir a ser chamado de assassino. Só espero que, no ofício de escritor, não tenhamos de, em breve, recorrer ciberneticamente aos juízes para construir nossas frases, contos, romances, poemas; os jornalistas, infelizmente, já vivem esse cerceamento – e não se trata de pré-julgamento, mas de usar as definições que os dicionários nos oferecem.

Capa do Cinco de Março
(Nos tempos do Cinco de Marco, era moda os jornais editarem, para consumo interno os tais “manuais de redação”. Lembro do Batista Custódio argumentar que “manual de redação é uma boa gramática”. Estava certo: o estilo, cada um faz o seu; ninguém legisla sobre o estilo).

Tenho formação acadêmica de professor. Especializei-me como educador. Sou jornalista “da antiga”, no dizer os jovens; ou seja, forjei-me no aprendizado das redações. Esta associação íntima faz-me um fervoroso defensor do diploma para o exercício responsável e ético das profissões. Assim, deixo de ser um burocrata que apenas confere a existência de um papel que ateste a escolaridade e das fotografias em becas e alegrias. Quero o diploma legítimo, conseguido com suor e lágrimas, com milhares de horas de leituras variadas.


Jornalista tem de ter cultura geral. Conhecer de artes, de história e geografia, de ciência e tecnologia. Tem de saber pesquisar, tem de ter sua biblioteca própria, saber do meio onde vive... Sei de colegas que desconhecem as ruas que delimitam o quarteirão onde vivem, muito menos de fatos marcantes na vida de sua cidade nas últimas décadas – muito menos de história, filosofia e sociologia.

(Nesse Canção Sozinha à Liberdade, Batista demonstra o quanto é importante saber da vida e de suas ciências; saber pesquisar e bem aplicar citações e ensinamentos dos mestres da Humanidade. Essa prática existe nos cursos de graduação de hoje? Se existem, são do domínio exclusivo dos professores, porque os alunos não têm alcance a essas práticas. E formam-se sem saber sequer os nomes dos livros onde podemos encontrar tais informações).

Antes, nas gerações que me antecederam e até uns poucos anos idos, a família oferecia padrões de valores aos pirralhos; e a pessoa juntava os exemplos dos mais velhos, as broncas de pais e castigos de mães ao aprendizado escolar para tornar-se “uma pessoa de bem”. É claro que, em alguns casos, a receita desandava, mas o resultado dominante era bom. Hoje, há pais que vão as escolas repreender e agredir professores que “dão notas baixas” aos seus pirralhos malcriados; disso resulta o adolescente drogado que agride, espanca, estupra e mata professores.


Há pais, também, que cobram dos mestres nas escolas ensinamentos que deviam vir de casa. Eu vi, ninguém me contou, um casal dizer (o pai de dedo em riste) a uma professora: “Sou eu quem paga o seu salário; portanto, é do meu direito exigir como você deve se relacionar com o meu filho”. Que bom, hem? Assim sendo, não precisamos mais estudar em universidades; basta irmos até os pais e perguntar-lhes como fazer.

O diploma de jornalista é indispensável, como todos os demais diplomas. O defeito não está na cobrança do diploma; o que devemos cobrar mesmo é o conteúdo dos cursos. Certa vez, deparei-me com quatro jovens e belas moças, todas de branco, escolhendo “pírcins” numa loja. Resolvi puxar assunto e provocá-las: “Estudam o quê”, perguntei; a que parecia líder, já ostentando os brilhosos metais no rosto e no umbigo à mostra, respondeu, orgulhosa – ou com enfado – que era Enfermagem. E não gostou da cara que fiz. Intimou-me: “Algum problema?”. Sim, claro: “Espero não encontrá-la nalgum hospital, pois se você não respeita o próprio corpo, não respeitará o meu”. A moça ficou brava. Calei-me e me retirei, pois já tinha lhes dado algo em que pensar.

Estreei em jornal lá em Anápolis, justamente no jornal O Anápolis, quando do aniversário de emancipação da cidade. Era, pois, 31 de julho, e o ano era 1967. Exerci, primeiro de modo informal, quebrando galho, trabalhos de assessor de imprensa no Banco do Estado de Goiás. Por poucos meses, trabalhei na assessoria de imprensa da Telegoiás. Depois, na Prefeitura de Goiânia e finalmente outra vez no BEG. Atuei noutros órgãos, na mesma função. Em jornais, e foram vários, fui repórter, fotógrafo, editor e editor geral. E sou feliz por ter integrado as equipes do Cinco de Marco e do Diário da Manhã (no DM, desde o seu início).

Saint-Exupéry
Para mim, conceituar liberdade é embebedar-se de utopias. Bem citou o Batista Custódio, em seu artigo que motiva esta viagem ao íntimo e ao passado, uma frase definitiva de Saint-Exupéry: “Só conheço uma liberdade, e essa é a liberdade do pensamento”. Em todos os nossos atos, decisões, atitudes, associações e envolvimentos tornamo-nos escravos. Quando amamos, somos súditos; ante os filhos, somos provedores e servidores; se ricos e empreendedores, limitamo-nos em contratos e parcerias e doamos metade da liberdade quando nos casamos. Só existe uma fórmula para o bom exercício da cidadania, da profissão, do amor, da educação e do suprimento da família: o apego à própria dignidade, que vem recheado de lealdade e confiança, além da consciência da nossa condição aristotélica de que não nascemos para ser sozinhos.

Esses libelos que, a tempos esparsos, o Batista Custódio traz a lume restauram em mim, remanescente da educação severa e do cerceamento dos “anos de chumbo”, a chance de reciclar a leitura, rever conceitos, elaborar ideias e, felizmente, agora, falar aos que vêm.

Há quarenta anos, jovem professor no ensino ginasial e colegial, fui cerceado do ofício. O êxito do meu modo de trabalho causou ciúmes em professores com histórias feitas, e espalharam por aí, em recados a dirigentes de escolas aonde me apresentava para lecionar, que “pode trazer problemas”. Era uma senha, medianamente compreendida, a dizer mais ou menos “ele é de esquerda” ou “é comunista”. Mudei de rumo, dediquei-me de vez à imprensa. Gostei muito da mudança, mas guardo em mim a mágoa contra aquelas duas professoras que, com o apoio de notório dedo-duro, tolheram-me um sonho – o de educador. Jornalista e escritor de livros, é possível que “não oferecesse perigo” ao regime.

Eu e Batista, na redação do Diário da Manhã
Concluo agradecendo ao Batista e deixando uma mensagem aos moços, sejam jornalistas ou professores, acadêmicos ou trabalhadores precoces: suas vidas devem ter estruturas reforçadas pelo aprendizado sólido; sejam elas alicerçadas por valores de respeito ao próximo e compromisso com a sociedade e o futuro. Nada há de mais triste que a ostentação de sabedoria sem o sedimento de fatos e a competência da crítica do merecimento, a avaliação correta e justa. O aprendizado amplo não nos faz superiores nem petulantes, mas traz-nos a riqueza só transferível aos que educamos: o prazer de bem-fazer e de angariar bons sentimentos.

Aos medíocres, as baratas.

* * *




6 comentários:

Adelaide Alvarenga disse...

Adorei a sua fala, ou melhor o seu escrito! Me lembrei de um texto que está circulando pela internet, da Elisne Brum que se chama: "Meu filho, você não merece nada". O seu texto completa o da referida escritora. Se ainda não o leu me avise e o enviarei a vc. Parabéns. É gostoso ler o que as pessoas que comungam os mesmos ideais, escrevem. Se a gente conseguisse, escreveria exatamente o que vc foi capaz de transmitir. Continue e não permita que ninguém limite os seus sonhos. Como jornalista vc é tbm um grande educador! Companheiro de missão. Gde abraço. Adelaide Alvarenga

Osair de Sousa Manassan disse...

É impossível conceber um ensino "Superior" sem sólidas bases de "senso crítico" e da formação "humanista". Desiludi-me com a Universidade tecnicista, tornei-me autodidata e recebo o desprezo (preconceito intelectual) dos "acadêmicos". Mas não me encano: sigo Nietzsche com o pensamento de que "o importante não é o que dizem de nós, mas o que fazemos daquilo que dizem de nós..."
Anos atrás, fazia terapia e, na segundo ou terceira sessão, não me lembro o contexto, o psicanalista disse que nunca se interessara por Machado de Assis. Nunca mais voltei ao consultório - como poderia confiar minha mente a alguém que nem lera "Dom Casmurro"?
Concordo inteiramente com você, meu caro Luiz. Por isso não me canso de ler, estudar e praticar.
Como sempre, uma crônica pra se meditar e apanhar ensinamentos.
Abraços!

Maria Dulce Loyola Teixeira disse...

Caro Luiz,
é importantíssimo a ética, a fidelidade com os fatos e que saibam redigir, nem digo que tenham um texto rico, mas é fundamental que não comentam tantos erros de português. No Estadão - São Paulo tem uma correção - ou tinha. O que se vê de erros nos títulos das matérias, sem dizer no texto em si. Todos comentem erros, mas é necessário que os jornalistas sejam formados, como você disse e continuem atentos.
Abraço,

Elder Rocha Lima disse...

Luiz de Aquino:
você, como vencedor, merece as batatas.

Abraços do leitor e amigo
Elder

Paulo Milano de Almeida disse...

Jornalismo, um apostolado -
“Não se entra duas vezes no mesmo rio”, do brilhante articulista Luiz de Aquino, caiu como uma luva para mim. Como aprendiz de jornalismo, reconheço que nossa profissão deve ser exercida como um verdadeiro apostolado. No entanto, vejo alguns colegas de classe que entram no curso porque sabem que as assessorias políticas pagam bem para o puxa-saco que conseguir encher mais linhas de páginas vazias dentro das cabeças corruptas. Sem dúvida, o tempo flui, a água passa, mas nunca nos molhamos no mesmo rio. A água continha a banhar, e a verdade segue atravessando o peito do atraso e se consagra na honestidade dos homens que impulsionam o progresso moral da humanidade. Bravo, Luiz de Aquino! E concordo: “Aos medíocres, as baratas!” (Paulo Milano de Almeida - publicado em Opinião Pública, do Diário da Manhã, Goiânia - 02/08/2011).

Na janela disse...

Boa tarde, Luiz.
Mais um texto primoroso. Parabéns!
Claro, fui lá cuscar o "Canção sozinha à liberdade".
Aprendi aqui, hoje, que muito do que fico indignada com o jorrnalismo (especialmente o "tele"), foi nomeado por ti de "cerceamento". Eu não tinha conhecimento de que o que na minha leitura eram equívocos causados por verdadeira ignorância das definições contidas em dicionários. Falo, especificamente, do uso dos vocábulos "suspeito" quando se tem todas, todas mesmo, informações de que aquele é criminoso efetivamente.
Claro que as indignações que me acometem ao assistir a um telejornal não são só desta natureza. Por vezes presencio verdadeiras aberrações de conhecimentos geográfricos ou geopolíticos que chegam a causar grande mal-estar (atual com ou sem hifem?rs)

Obrigada por proporcionar mais esta agradável leitura. E fica aqui o registro que a universidade jamais dará conta do que o ensino básico deixou a descoberto.
Um abraço