Égua
das letras
Aquela
década de 1960, marcada por tanta coisa que reflete fortemente na vida atual,
seria a dos meus anos dourados. Vamos ver? Em 1958, entrei no ginasial; em
1960, torci e distribuí panfletos, fiz discursos infantis nos trens da Central e
no frontal do colégio – tentava eleger o Marechal Lott em lugar de Jânio
Quadros. A bossa nova surgira com força. Em 1961, paramos as escolas e, com os
trabalhadores, o Rio de Janeiro e o país quanto Jânio renunciou.
Em
1963, voltei para Goiás – mas nunca mais Caldas Novas; minha cidade, desde
então, é Goiânia, com Caldas Novas na saudade e Pirenópolis, sempre, no
coração. O golpe militar em 1964, a revolução na indústria e na propaganda, a
mudança de costumes, estimulada pelas novidades musicais e pela pílula
anticoncepcional. Casei-me em 1965, aos vinte anos de idade. Ou seja, tudo
mudava, tudo!
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O idílio romano... |
Cinema? Marcas fortes foram “O Candelabro Italiano” e “Doutor Jivago”, carimbados por duas canções que fizeram nossas cabeças e nossos corações – “Al di là”, para o primeiro, e “Tema de Lara” no épico russo. A melodia italiana, de Carlo Donida e Mogol, virou varinha mágica: cantá-la equivalia a uma cantada (perdoem-me pelo trocadilho, mas fez-se inevitável, agora). De fato, amolecia corações, quebrava resistências. Quantos namoros e casamentos não se fizeram ao som terno e romântico dessa música! “Muito além das estrelas, tu estás, tu estás, muito além”...
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Todo mundo comprava, ouvia, cantava e se apaixonava... |
“Tema
de Lara”, de Maurice Jarre e Red Steagall, fartamente cantada onde houvesse
amor, paixão e (ou) suas possibilidades, fez florir milhões de corações mundo
afora! Tive um professor de Inglês em Anápolis (cursei lá um semestre de
escola) que levou-nos a letra-poema que contrariava a afirmativa de que as
letras de músicas do Tio Sam eram desprovidas de poesia: “Somewhere a hill blossoms in green and
gold,
and there are dreams, all that your heart can hold” – ou, em tradução
livre “bái maisselfe”: “Em algum lugar um monte se rompe em verde e ouro, e há
sonhos, todos os que seu coração puder colher”.
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"...a hill blossoms in green and gold..." |
Parêntese:
sou feliz por ter vivido coisas assim. E mais feliz por lembrá-las. Não é
saudosismo nem retrocesso, pois, para mim, o melhor tempo é agora! Entre
aqueles anos que deveriam ser dourados – mas turvaram-se pelo cerceamento à
liberdade, às limitações das expressões. Só mesmo nossos sonhos continuaram livres
e puderam manifestar-se quando “raiou a liberdade no horizonte do Brasil” (do
poema que vem a ser o Hino da Independência, atribuído a D. Pedro I). Uma
liberdade duramente reconquistada e, hoje, manchada de vícios e péssimas
intenções, parte delas concretizadas, outra parte reprimida ao peso da Lei –
quando possível, quando escapa de “sanas” e “barbalhas”.
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Não tínhamos medo de lutar |
Cumprindo
exigências dos promotores, que se
esqueceram de convidar ou convocar instituições como a União Brasileira dos
Escritores (a maior e das mais atuantes entre as entidades culturais em Goiás),
a Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás e a Academia Goiana de Letras, o
trio designou uma moça, que “representava” o fazer literário de uma cidade
entre as duas capitais deste Planalto Central, para expor ao plenário uma
proposta de trabalho.
Quando
soube disso, fiquei meio incrédulo... Como pode? Três escritores apenas
para apresentar uma proposta de trabalho com objetivos de... De que mesmo? Não
atinei! Mas o que a moça disse aos demais artistas era algo de causar
estranheza: ela se valeu da ocasião para contar de seus feitos na cidade que
representava no tal encontro que, parece, pretende juntar elementos que
justifiquem o esforço de se criar, na esfera do Governo Estadual, uma
Secretaria da Cultura (já existiu; um deputado puxa-saco, com sobrenome de
líder comunista, conseguiu aprovar na Assembleia, no começo da década de 1990,
o fechamento da dita cuja, com a simpatia do governador da época).
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A gente sabe... cultura estressa! |
A
moça contou que seu trabalho consiste em percorrer a cidade numa carroça cheia
de livros, “levando cultura” aos munícipes. E que tinha o apoio decidido da
prefeita, que a socorre sempre que a égua das letras empaca ou adoece,
substituindo o simplório e embrionário cabriolé por uma viatura com motorista.
Gente,
isso me envergonha mais que bala perdida! Será que dá filme para concorrer ao
Oscar? Afinal, somos hábeis no cinema da subvida, da subserviência e do
complexo de vira-lata.
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