DM,
36 anos: a notícia é nossa vida
É preciso contar
aos desavisados jovens que pedem intervenção militar o que foram os anos de
total restrição das liberdades – mas, se continuarem incréus, que viagem para
um país sob o arbítrio, que ainda os há por aí, em ásias e áfricas anacrônicas,
conservadoras de costumes e medos que sustentam o poder em torno de um, em
benefício de poucos e sob os sacrifícios ilimitados de todos os demais.
No decurso de
1964, os jornais ainda noticiavam – conforme sua linha de ligação com o poder
ou sua postura de liberdade – as prisões sem amparo legal e as torturas
denunciadas, e muitos foram os que, deixando as masmorras dos quartéis e
delegacias, procuraram cartórios para ali lavrarem depoimentos livres,
contradizendo o que foram obrigados a “confessar” sob torturas que variavam dos
tapas simultâneos nos dois ouvidos até mesmo sevícias e castração.
Em locais como as
portas dos colégios e universidades, as calçadas do centro da cidade (e pontos
preferenciais como as cercanias do Café Central, da Livraria Cultura Goiana, do
Bazar Oió, os bares joviais da Rua 8 etc.) sujeitos armados com cara de raiva
empurravam-nos dizendo “dispersa, dispersa” ou “circulando, circulando” porque,
diziam eles, “mais de três é comício, dispersando, dispersando!”.
Nas salas de
aulas, nos ambientes de trabalho, nos clubes (como gostávamos de clubes!) e em
qualquer lugar de convívio havia espiões. Jovens suspeitos (e suspeitavam de
quase todos os jovens, especialmente estudantes) eram sequestrados em casa, de
madrugada, por agentes mal-encarados e bem armados, transitando nervosos nas
imortalizadas (por Chico Buarque) “negras viaturas” do sistema de repressão.
Um índice de quase
300 palavras e expressões foi divulgado a todas as editoras e veículos de
comunicação – era um moderno Prohibitorum
Index verborum, do qual constavam expressões como “ligas camponesas” e
nomes próprios de alguns vultos (Juscelino Kubitschek, Carlos Lacerda etc.).
Letras de músicas eram sempre suspeitas e os censores, que não sabiam discernir
entre um poema e uma canção decidiam censurar tudo. Os poetas trocaram os
versos pela prosa, no afã de despistar os incultos censores – e isso deu certo.
O medo era
constante. Qualquer mau-caráter valia-se da palavra “comunista” para apontar
alguém para qualquer agente da repressão, fosse militar ou policial. Era um
modo de se livrar dos inimigos ou de pessoas por eles invejadas.
Dentre os
mais-velhos de agora que defendem a volta dos coturnos encontro muitos que não
vacilavam em dedurar desafetos. Muitos são hoje carecas ou grisalhos, não usam
mais os cabelões daqueles tempos, muitos continuam dependurados em cargos
públicos porque não conseguem viver sem o guarda-chuva do poder público – mas
recordam-se dos tempos em que, além de polpudas sinecuras, desfrutavam também
do “direito” de dedurar, de ser convidados para os regabofes custeados pelo
erário e de conseguir folgas para devaneios no litoral ou fora do país – muitas
vezes com o beneplácito de um chefe bondoso que “liberava” diárias em
dólares...
A censura prévia
era praticada em todas as redações de notícias do país. Um sujeito com
distintivo, nem sempre detentor de escolaridade razoável (ao menos), trabalhava
nas redações com um grande lápis vermelho com que cortava textos, suprimia-os,
mandava trocar palavras ou frases inteiras, censurava matérias inteiras. Grandes
jornais, como o Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro – lançou mão de um
artifício: sempre que o censor mandava retirar alguma matéria jornalística, em
seu lugar eram colocadas receitas culinárias ou longos textos em Latim. O
leitor, que só por saber ler tinha nível intelectual superior ao dos censores –
compreendeu logo que aquilo era lugar de alguma matéria totalmente censurada.
A proibição
fortalece a criatividade, porém!
Desenvolvi uma
técnica diferenciada – a de me prevenir com palavras brandas para substituir as
que os censores mandariam cortar. Assim, e sem bater de frente (o que podia
provocar denúncia e prisão), “aceitava” a censura e substituía o termo proibido
por algum suave e dócil, no critério do agente mutilador de textos e jornais.
Havia colegas que, em lugar disso, colocava reticências no lugar da palavra
suprimida, ou simplesmente as removia, deixando o texto ininteligível – o que
também era uma pista para o leitor.
Nossos músicos
jovens – pessoas talentosas nascidas (como dizia o cartunista Henfil) “nos 40”
– desdobraram-se também na criatividade para produzir textos que cantariam pela
vida afora com fortes ironias à máquina repressiva, como um famoso samba de
João Bosco e Aldir Blanc, assim: “Não põe corda no meu bloco / não vem com seu
carro-chefe / não dá ordem ao pessoal / Não traz lema nem divisa / que a gente
não precisa / que organizem nosso carnaval”.
E eram Gil, Chico,
Aldir, Bosco, Paulo César Pinheiro, Vandré, Gonzaguinha, Vinícius e tantos, tantos
outros... Um deles, Torquato, não conteve a impaciência nem suportou a
intolerância – matou-se aos 28 anos, deixando um lacônico bilhete – “Para mim
chega”.
Mas houve também
os que eles mataram. Como o tecladista de Vinícius, sequestrado e morto por militares
argentinos horas antes de um xou do Poetinha. Muitos foram “aconselhados” a
passar alguns anos fora do país. Contra todos eles o sistema criou fatos –
plantavam entorpecentes em seus bolsos e bagagens, mandavam espalhar que eram
homossexuais e outras práticas impróprias.
Era um tempo em
que a imprensa passou a ser tachada de esquerdista – por se tornar uma pedra
dentro dos coturnos. Lembro-me de um oficial do Exército, comissionado coronel
para comandar a PM de Goiás, que fechava uma das mãos e abria os dedos, um a
um, enumerando “jornalistas”; “índios”; “estudantes”; “professores”; “músicos”;
“poetas” – e os qualificava genericamente:
– Tudo comunista!
Com isto,
justificava as prisões e torturas, mas quanto às mortes ele não tinha respostas
claras. Preferia dizer que “a gente solta e eles somem, são os companheiros que
dão sumiço neles porque suspeitam que o cara abriu” (por “abriu”, entenda-se
“delatou”).
Foi sob esse clima
que deixei o Jornal Opção – então diário – e fui para o Cinco de Março. O
semanário de Batista Custódio tinha fama de libertário, era esperado com
ansiedade pelos leitores ávidos de novidades. O que nos diários era tratado com
um cuidado exacerbado aparecia no jornal das segundas-feiras com o toque de
paciência de quem pode trabalhar um texto por alguns dias, pode analisar os
fatos com mais vagar e precisão.
Sem falsa modéstia
– trabalhar no Cinco de Março não era para qualquer escrevinhador, não... Era
preciso coragem e perspicácia, bom domínio do texto – afinal, era o reduto de
redatores como Anatole Ramos, Jávier Godinho, o próprio Batista Custódio, Marco
Antônio Silva Lemos, Eliezer Pena, Carmo Bernardes, Consuelo Nasser, Jurandir
Santos... Enfim, um time de primeira linha! É óbvio que omito aqui vários
notáveis, mas a memória sempre nos trai – mas não posso omitir Djalba Lima,
jovem e talentoso.
Era no Cinco de
Março que apareciam as mais sérias denúncias, sem a barreira do poder político
ou econômico. Havia um apego quase obsessivo pela “verdade, doa a quem doer” e
o slogan era: Nem Washington, nem Moscou nem Roma – Tudo pelo Brasil!
E chegou 1980. Na
redação da construção simplória na avenida 24 de Outubro, notamos um
entra-e-sai incontrolável, e não eram os costumeiros políticos e empresários
que diariamente nos visitavam. Eram, sim, jornalistas conhecidos e tarimbados,
com destaque para um, especialmente – Carlos Alberto Sáfadi, que viria a
dirigir a equipe nos primórdios, sendo substituído por Washington Novaes.
Era janeiro e as
aparências eram de mudanças. Ao lado, e como um profissional por mim admirado e
sempre bem-humorado, Luiz Augusto Pampinha começou a fazer conjecturas. “Se bem
conheço, e conheço bem essas pessoas, o Batista vai transformar o Cinco de
Março num diário”.
E chegou o momento
de perguntar ao Batista. Ele respondeu com um sonoro e sólido “Não”. Mas pouco
depois – talvez no dia seguinte, ou na segunda-feira seguinte, talvez – ele nos
contou que teríamos um diário, sim, mas o Cinco de Março continuaria. E
estabeleceu uma separação, os jornalistas do Cinco de Março deviam se manter
distantes da nova equipe, que começaria a chegar naqueles dias.
Consuelo Nasser
ficou cuidando do Cinco de Março, Batista tratava do novo jornal. Marco Antônio
Silva Lemos transferiu-se para o novo jornal. Eu fui demitido por Consuelo.
Menos de dois dias se passaram quando Marco Antônio chamou-me e disse que eu
iria para o novo jornal (ainda sem nome); estranhei, pois fora demitido e
achava complicado... Marco me contou que foi a própria Consuelo quem me indicou
para integrar a nova equipe.
Fizemos alguns
“pilotos”, ou “números-zero”, cada qual com um nome e uma diagramação
diferenciada de primeira página. Depois de algumas experiências (se não me
engano, foram 19), tivemos outra surpresa – todas as edições foram estampadas
na parede e tivemos a incumbência de escolher uma das diagramações e um nome.
Por longos anos,
mesmo após aquele hiato de dois anos, causado pela truculência de um governo
pós-ditadura – mas com muita vocação para aqueles tempos – o Diário da Manhã
ostentou a mesma diagramação, um marco fortíssimo de inovação no jornalismo
local. Os diários goianos tinham a tradição de não circular às segundas-feiras
– fomos pioneiros nisso. Os grandes jornais brasileiros começaram a sair em
cores – o DM foi pioneiro em Goiás, de novo.
Um colega,
especialmente, nascido sob o signo das restrições, mas criado em meio à vocação
da liberdade e o cheiro de papel e tinta, bem representou, nas primeiras duas
décadas, a alma inovadora e libertária do DM – Fábio Nasser. Era impossível
estar com Fábio sem que qualquer assunto escapasse do ambiente e das causas do
jornal, e ele curtia os meandros da poesia e da filosofia com o mesmo ímpeto
apaixonado.
Inovar, aliás, é
tônica constante. No DM a poesia sempre teve espaço. No DM o artista goiano não
é discriminado nem há gêneros menosprezados. No DM a vocação pela liberdade das
ideias e expressões não morre – e justamente por isso mantêm-se aqui um caderno
especial, diário, o Opinião Pública, que vem a ser uma tribuna perpétua para a
prática da livre expressão.
Não bastasse isso,
o Opinião Pública reserva a última página, todos os domingos, para a divulgação
da poesia, acasalada com a ilustração por notáveis artistas da terra. Esse
trabalho, de criteriosa seleção de poetas e artistas, cabe à competente poetisa
e acadêmica Elizabeth Abreu.
Concluo apressado,
não por falta do que mais dizer, mas porque este é um momento de festa, mas
também de liberdade. Estes 36 anos de presença do DM na vida goiana são, sim,
importante parte da minha vida – mas muito mais importante parte na vida da
sociedade da nossa terra. De nossa parte – do Batista Custódio e seus filhos,
dos jornalistas que se identificam com esta ideologia e esta prática da notícia
– sei que sempre faremos por inovar, ou nossa ação não teria sentido.
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Luiz de
Aquino é jornalista e escritor, membro da Academia Goiana de Letras.
4 comentários:
Fiquei pasma com a narrativa...ela descreve não somente a trajetória do DM, como faz uma retrospectiva dos "anos de chumbo", em que, infelizmente, tantos se calaram - uns, temporariamente, outros, menos afortunados, para sempre. Bela reflexão!
Meu caro poeta, como sempre suas crônicas são de uma lucidez sem igual. Não sou favorável a ditadura e confesso que, por ter pouca idade na ocasião do golpe militar de 64 (tinha apenas 5 anos), tenha me tornado um alienado político sobre toda situação e injustiças ao qual o país passava à época.
Texto altamente informativo, excelente aula de história.
Encantada com esta crônica! Muito oportuna e elucidativa. Meus alunos vão adorar.
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