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sexta-feira, março 11, 2016

Os 36 anos do Diário da Manhã (Goiânia)

DM, 36 anos: a notícia é nossa vida



É preciso contar aos desavisados jovens que pedem intervenção militar o que foram os anos de total restrição das liberdades – mas, se continuarem incréus, que viagem para um país sob o arbítrio, que ainda os há por aí, em ásias e áfricas anacrônicas, conservadoras de costumes e medos que sustentam o poder em torno de um, em benefício de poucos e sob os sacrifícios ilimitados de todos os demais.

No decurso de 1964, os jornais ainda noticiavam – conforme sua linha de ligação com o poder ou sua postura de liberdade – as prisões sem amparo legal e as torturas denunciadas, e muitos foram os que, deixando as masmorras dos quartéis e delegacias, procuraram cartórios para ali lavrarem depoimentos livres, contradizendo o que foram obrigados a “confessar” sob torturas que variavam dos tapas simultâneos nos dois ouvidos até mesmo sevícias e castração.

Em locais como as portas dos colégios e universidades, as calçadas do centro da cidade (e pontos preferenciais como as cercanias do Café Central, da Livraria Cultura Goiana, do Bazar Oió, os bares joviais da Rua 8 etc.) sujeitos armados com cara de raiva empurravam-nos dizendo “dispersa, dispersa” ou “circulando, circulando” porque, diziam eles, “mais de três é comício, dispersando, dispersando!”.

Nas salas de aulas, nos ambientes de trabalho, nos clubes (como gostávamos de clubes!) e em qualquer lugar de convívio havia espiões. Jovens suspeitos (e suspeitavam de quase todos os jovens, especialmente estudantes) eram sequestrados em casa, de madrugada, por agentes mal-encarados e bem armados, transitando nervosos nas imortalizadas (por Chico Buarque) “negras viaturas” do sistema de repressão.

Um índice de quase 300 palavras e expressões foi divulgado a todas as editoras e veículos de comunicação – era um moderno Prohibitorum Index verborum, do qual constavam expressões como “ligas camponesas” e nomes próprios de alguns vultos (Juscelino Kubitschek, Carlos Lacerda etc.). Letras de músicas eram sempre suspeitas e os censores, que não sabiam discernir entre um poema e uma canção decidiam censurar tudo. Os poetas trocaram os versos pela prosa, no afã de despistar os incultos censores – e isso deu certo.

O medo era constante. Qualquer mau-caráter valia-se da palavra “comunista” para apontar alguém para qualquer agente da repressão, fosse militar ou policial. Era um modo de se livrar dos inimigos ou de pessoas por eles invejadas.

Dentre os mais-velhos de agora que defendem a volta dos coturnos encontro muitos que não vacilavam em dedurar desafetos. Muitos são hoje carecas ou grisalhos, não usam mais os cabelões daqueles tempos, muitos continuam dependurados em cargos públicos porque não conseguem viver sem o guarda-chuva do poder público – mas recordam-se dos tempos em que, além de polpudas sinecuras, desfrutavam também do “direito” de dedurar, de ser convidados para os regabofes custeados pelo erário e de conseguir folgas para devaneios no litoral ou fora do país – muitas vezes com o beneplácito de um chefe bondoso que “liberava” diárias em dólares...

A censura prévia era praticada em todas as redações de notícias do país. Um sujeito com distintivo, nem sempre detentor de escolaridade razoável (ao menos), trabalhava nas redações com um grande lápis vermelho com que cortava textos, suprimia-os, mandava trocar palavras ou frases inteiras, censurava matérias inteiras. Grandes jornais, como o Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro – lançou mão de um artifício: sempre que o censor mandava retirar alguma matéria jornalística, em seu lugar eram colocadas receitas culinárias ou longos textos em Latim. O leitor, que só por saber ler tinha nível intelectual superior ao dos censores – compreendeu logo que aquilo era lugar de alguma matéria totalmente censurada.

A proibição fortalece a criatividade, porém!

Desenvolvi uma técnica diferenciada – a de me prevenir com palavras brandas para substituir as que os censores mandariam cortar. Assim, e sem bater de frente (o que podia provocar denúncia e prisão), “aceitava” a censura e substituía o termo proibido por algum suave e dócil, no critério do agente mutilador de textos e jornais. Havia colegas que, em lugar disso, colocava reticências no lugar da palavra suprimida, ou simplesmente as removia, deixando o texto ininteligível – o que também era uma pista para o leitor.

Nossos músicos jovens – pessoas talentosas nascidas (como dizia o cartunista Henfil) “nos 40” – desdobraram-se também na criatividade para produzir textos que cantariam pela vida afora com fortes ironias à máquina repressiva, como um famoso samba de João Bosco e Aldir Blanc, assim: “Não põe corda no meu bloco / não vem com seu carro-chefe / não dá ordem ao pessoal / Não traz lema nem divisa / que a gente não precisa / que organizem nosso carnaval”.

E eram Gil, Chico, Aldir, Bosco, Paulo César Pinheiro, Vandré, Gonzaguinha, Vinícius e tantos, tantos outros... Um deles, Torquato, não conteve a impaciência nem suportou a intolerância – matou-se aos 28 anos, deixando um lacônico bilhete – “Para mim chega”.

Mas houve também os que eles mataram. Como o tecladista de Vinícius, sequestrado e morto por militares argentinos horas antes de um xou do Poetinha. Muitos foram “aconselhados” a passar alguns anos fora do país. Contra todos eles o sistema criou fatos – plantavam entorpecentes em seus bolsos e bagagens, mandavam espalhar que eram homossexuais e outras práticas impróprias.

Era um tempo em que a imprensa passou a ser tachada de esquerdista – por se tornar uma pedra dentro dos coturnos. Lembro-me de um oficial do Exército, comissionado coronel para comandar a PM de Goiás, que fechava uma das mãos e abria os dedos, um a um, enumerando “jornalistas”; “índios”; “estudantes”; “professores”; “músicos”; “poetas” – e os qualificava genericamente:
– Tudo comunista!
Com isto, justificava as prisões e torturas, mas quanto às mortes ele não tinha respostas claras. Preferia dizer que “a gente solta e eles somem, são os companheiros que dão sumiço neles porque suspeitam que o cara abriu” (por “abriu”, entenda-se “delatou”).

Foi sob esse clima que deixei o Jornal Opção – então diário – e fui para o Cinco de Março. O semanário de Batista Custódio tinha fama de libertário, era esperado com ansiedade pelos leitores ávidos de novidades. O que nos diários era tratado com um cuidado exacerbado aparecia no jornal das segundas-feiras com o toque de paciência de quem pode trabalhar um texto por alguns dias, pode analisar os fatos com mais vagar e precisão.

Sem falsa modéstia – trabalhar no Cinco de Março não era para qualquer escrevinhador, não... Era preciso coragem e perspicácia, bom domínio do texto – afinal, era o reduto de redatores como Anatole Ramos, Jávier Godinho, o próprio Batista Custódio, Marco Antônio Silva Lemos, Eliezer Pena, Carmo Bernardes, Consuelo Nasser, Jurandir Santos... Enfim, um time de primeira linha! É óbvio que omito aqui vários notáveis, mas a memória sempre nos trai – mas não posso omitir Djalba Lima, jovem e talentoso.

Era no Cinco de Março que apareciam as mais sérias denúncias, sem a barreira do poder político ou econômico. Havia um apego quase obsessivo pela “verdade, doa a quem doer” e o slogan era: Nem Washington, nem Moscou nem Roma – Tudo pelo Brasil!

E chegou 1980. Na redação da construção simplória na avenida 24 de Outubro, notamos um entra-e-sai incontrolável, e não eram os costumeiros políticos e empresários que diariamente nos visitavam. Eram, sim, jornalistas conhecidos e tarimbados, com destaque para um, especialmente – Carlos Alberto Sáfadi, que viria a dirigir a equipe nos primórdios, sendo substituído por Washington Novaes.

Era janeiro e as aparências eram de mudanças. Ao lado, e como um profissional por mim admirado e sempre bem-humorado, Luiz Augusto Pampinha começou a fazer conjecturas. “Se bem conheço, e conheço bem essas pessoas, o Batista vai transformar o Cinco de Março num diário”.

E chegou o momento de perguntar ao Batista. Ele respondeu com um sonoro e sólido “Não”. Mas pouco depois – talvez no dia seguinte, ou na segunda-feira seguinte, talvez – ele nos contou que teríamos um diário, sim, mas o Cinco de Março continuaria. E estabeleceu uma separação, os jornalistas do Cinco de Março deviam se manter distantes da nova equipe, que começaria a chegar naqueles dias.

Consuelo Nasser ficou cuidando do Cinco de Março, Batista tratava do novo jornal. Marco Antônio Silva Lemos transferiu-se para o novo jornal. Eu fui demitido por Consuelo. Menos de dois dias se passaram quando Marco Antônio chamou-me e disse que eu iria para o novo jornal (ainda sem nome); estranhei, pois fora demitido e achava complicado... Marco me contou que foi a própria Consuelo quem me indicou para integrar a nova equipe.

Fizemos alguns “pilotos”, ou “números-zero”, cada qual com um nome e uma diagramação diferenciada de primeira página. Depois de algumas experiências (se não me engano, foram 19), tivemos outra surpresa – todas as edições foram estampadas na parede e tivemos a incumbência de escolher uma das diagramações e um nome.

Por longos anos, mesmo após aquele hiato de dois anos, causado pela truculência de um governo pós-ditadura – mas com muita vocação para aqueles tempos – o Diário da Manhã ostentou a mesma diagramação, um marco fortíssimo de inovação no jornalismo local. Os diários goianos tinham a tradição de não circular às segundas-feiras – fomos pioneiros nisso. Os grandes jornais brasileiros começaram a sair em cores – o DM foi pioneiro em Goiás, de novo.

Um colega, especialmente, nascido sob o signo das restrições, mas criado em meio à vocação da liberdade e o cheiro de papel e tinta, bem representou, nas primeiras duas décadas, a alma inovadora e libertária do DM – Fábio Nasser. Era impossível estar com Fábio sem que qualquer assunto escapasse do ambiente e das causas do jornal, e ele curtia os meandros da poesia e da filosofia com o mesmo ímpeto apaixonado.

Inovar, aliás, é tônica constante. No DM a poesia sempre teve espaço. No DM o artista goiano não é discriminado nem há gêneros menosprezados. No DM a vocação pela liberdade das ideias e expressões não morre – e justamente por isso mantêm-se aqui um caderno especial, diário, o Opinião Pública, que vem a ser uma tribuna perpétua para a prática da livre expressão.

Não bastasse isso, o Opinião Pública reserva a última página, todos os domingos, para a divulgação da poesia, acasalada com a ilustração por notáveis artistas da terra. Esse trabalho, de criteriosa seleção de poetas e artistas, cabe à competente poetisa e acadêmica Elizabeth Abreu.

Concluo apressado, não por falta do que mais dizer, mas porque este é um momento de festa, mas também de liberdade. Estes 36 anos de presença do DM na vida goiana são, sim, importante parte da minha vida – mas muito mais importante parte na vida da sociedade da nossa terra. De nossa parte – do Batista Custódio e seus filhos, dos jornalistas que se identificam com esta ideologia e esta prática da notícia – sei que sempre faremos por inovar, ou nossa ação não teria sentido.



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Luiz de Aquino é jornalista e escritor, membro da Academia Goiana de Letras.

4 comentários:

Leni Tomazia Carneiro disse...

Fiquei pasma com a narrativa...ela descreve não somente a trajetória do DM, como faz uma retrospectiva dos "anos de chumbo", em que, infelizmente, tantos se calaram - uns, temporariamente, outros, menos afortunados, para sempre. Bela reflexão!

Sergio Luiz Silveira disse...

Meu caro poeta, como sempre suas crônicas são de uma lucidez sem igual. Não sou favorável a ditadura e confesso que, por ter pouca idade na ocasião do golpe militar de 64 (tinha apenas 5 anos), tenha me tornado um alienado político sobre toda situação e injustiças ao qual o país passava à época.

Jô Sampaio disse...

Texto altamente informativo, excelente aula de história.

Adélia Freitas Silva disse...

Encantada com esta crônica! Muito oportuna e elucidativa. Meus alunos vão adorar.