Eu, pequeno burguês?
"Felicidade, passei no vestibular / Mas a faculdade é particular”
Eram tempos difíceis, forjados no silêncio forçado e vividos sob a ameaça constante da repressão a cassetetes, das prisões sem mandado judicial, das perseguições pelo critério seletivo de quem podia. E poder, naquele tempo, era muito mais relativo que hoje...
“Livros tão caros / Tanta taxa pra pagar”
A realidade financeira ainda é a mesma, agravada por um sem-números de itens hoje indispensáveis, mas inexistentes naquele tempo. Quem, dentre nós, tinha carro? Quando muito, uma Lambreta ou Vespa. No geral, éramos usuários de ônibus, bondes e trens urbanos, sempre muito cheios, atrasados e desconfortáveis:
“Morei no subúrbio / Andei de trem atrasado / Do trabalho ia pra aula / Sem jantar e bem cansado”...
Essa realidade continua parecida... Mas...
“Mas lá em casa à meia-noite / Tinha sempre a me esperar / Um punhado de problemas / E crianças pra criar / Para criar, só crianças pra criar”.
E os anos se passavam; sorrisos, dificuldades, socorros, amizades, alianças, superações... Era um tempo difícil, porque eram raras as escolas, difícil demais o acesso às vagas e, principalmente, difícil chegar ao final do curso. Buscava-se, como hoje, um lugar melhor para se viver e criar os filhos e oferecer-lhes horizontes mais amplos e um mundo melhor. Mas eram anos de chumbo. Havia um tal de Ato Institucional número 5 e, na esteira dele, um Decreto 477. O AI-5 atingia toda a sociedade brasileira, restringindo ações e falas. Não restringia o pensamento porque este é privativo do indivíduo.
Minha turma original, ingressada na Universidade Católica em 1968, colou grau em 1971. Eu, não; tranquei matrícula, fui para a Universidade de Brasília, queria ser geólogo. Bastaram-me as primeiras matérias, aquelas do básico, para me convencer de que não seria geólogo. O lado romântico, aquele de se estar em campo, em pesquisas de solos e estruturas, era ofuscado pela retaguarda de química e cálculos. Voltei.
Voltei, e comigo veio a malfadada reforma que instituiu um critério de créditos. Não consegui me matricular em 1972; em 1973, não tive dinheiro. No ano seguinte, repeti todo o quarto ano com a última turma do regime seriado. Faltaram-me matérias, não pude colar grau. Novo afastamento, uma série infindável de requerimentos e consultas e, por iniciativa própria, cursei tudo o que ofereciam para o curso e que eu não havia cursado, ainda. Resultado: formei-me em 1978, com uma sobra solene de 555 horas-aula (número que não dá para esquecer).
“Mas felizmente / Eu consegui me formar”, continua o samba. E, para mim, ele se aplicava, ainda: ““Mas felizmente / Eu consegui me formar / Mas da minha formatura / Nem cheguei a participar. / Faltou dinheiro pra beca / E também pro meu anel / Nem o diretor careca / Entregou o meu papel / O meu papel, meu canudo de papel”.
Éramos vários cursos numa só solenidade de colação de grau, todos de Licenciatura. Fizeram-nos vestir becas, mas não nos concederam o capelo, que era posicionado sobre a cabeça de cada um de nós no momento em que o reitor recitava aquela frase que, na liturgia, significava a concessão de grau. Não soube de festas naquele ano, para nós, algo como baile, churrascos etc... Pode ter havido algumas comemorações, mas no âmbito dos pequenos grupos.
“E depois de tantos anos / Só decepções, desenganos / Dizem que sou burguês / Muito privilegiado / Mas burgueses são vocês / Eu não passo de um pobre coitado / E quem quiser ser como eu / Vai ter que penar um bocado”.
Faltou dizer: daqueles vários cursos de novos professores, nenhum de nós teve direito a voz. Não nos permitiram sequer o discurso de formatura.
4 comentários:
Liga bôa é forjada a ferro e fôgo. Só aí fica rígida e nada a destrói. Agora entendo sua supremacia.
Felicidades...
Entrei na faculdade em 1974, ano do climax do AI5, mas eu não sabia disso. Fui conhecer a real história dos anos de chumbo em 1980, quando passei a ler a Folha de São Paulo.
Não é a toa que dizem que a medicina aliena. Concordo, mas tratei de tirar o atraso e o cabresto, interessando-me por outros temas, inclusive jornalismo, curso que farei o terceiro período. A faculdade é muito isso que foi contado no texto ao lado do lindo poema de Martinho da Vila--criativo.
Os meus dois tempos de acadêmica apresentaram-se diversos, mas com algumas semelhanças com o seu.Hoje como podemos falar tudo, nem sequer imaginamos o que é a mordaça, o sentir-se acuado, mas chega a doer imaginar uma turma formar-se sem poder fazer o discurso: uma página perdida na nossa história.
Mara Narciso
Andei revendo tudo que escreveu aqui. Mais e mais eu lhe admiro, até nossas pequenas brigas acabaram. O blog não deixa mais puxar as suas orelhas.
Como me identifiquei com seu texto!!!
Por "N" motivos também só terminei a faculdade em 75, sem discursos, sem beca, sem capelo. Quem viveu os Anos de Chumbo sabe muito bem de tudo isso.
O recurso de entremear o poema de Martinho da Vila tornou sua crônica muito original, bela e mais uma vez, uma obra de arte.
Parabéns amigo.
Anna Cortás
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