Onde falta o instinto
O homem é, talvez, o único animal que, por dedicar-se integralmente à sua capacidade racional, se distanciou da segurança que os instintos proporcionam às demais espécies animais. Tudo o que nos põe em risco, desprezando-se as relações da cadeia alimentar, decorre da nossa condição racional, ou seja, do desprezo que damos aos cuidados intuitivos e ao arrojo que nos é próprio.
Nunca ouvi falar em choque de aves em vôo, mas muitos foram os encontros de aviões (em vôo ou mesmo no solo). Animais não se atropelam, respeitam-se entre si e não há matança por razões de patrimônio (essa coisa maluca a que chamamos de guerra). Nenhuma espécie dentre os irracionais carece de códigos – apenas dos de defesa própria, quando se é caça, ou de tática de ataque, enquanto se é caçador.

Mas os humanos, não; os humanos – nós, os tais de “sapiens” – estes somos tão metódicos que nos damos ao luxo de escravizar outras espécies, num processo chamado de “criatório”, para assegurar-nos o alimento. E como temos consciência de futuro (relativamente, eu sei), usamos esse processo de criação, produção, industrialização, distribuição e outros “ãos” para a formação de patrimônio.
A vida humana é, pois, cada vez mais complexa. O homem atual não se alimenta de praticamente nada “in natura”, pois desde a água até os mais sofisticados alimentos, tudo passa por processos e métodos científicos e técnicos. E tudo custa muito, seja em dinheiro, seja em aprendizado e em desgastes pessoais.

E trânsito? Na minha bucólica Caldas Novas, os carros não eram mais que umas poucas dezenas. Lembro-me bem que as placas de automóveis, antes de se adotarem letras na combinação, eram em três parcelas, e as placas de Caldas Novas, até mais ou menos 1972, eram 1-75-00 até 1-75-99. Nunca se chegou a esses previstos cem veículos, nas zonas urbana e rural. Vale lembrar que, naquela época, motocicleta era raridade; se alguma havia por lá, seria apenas uma. Ou o dobro disso.
Em poucas décadas (pouquíssimas), o Brasil do sertão foi descoberto. Sim: Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil do litoral; Juscelino Kubitschek descobriu o Brasil do sertão. Com isso, incrementaram-se as estradas e as indústrias; renegou-se o trem em favor do caminhão; os ônibus e os carros de passeio multiplicaram-se nas cidades e nas rodovias. Jamais, na minha juventude, imaginávamos que Caldas Novas teria linhas regulares de ônibus urbanos, por exemplo.

O sertão cresceu, apareceu uma tal de qualidade de vida, as cidades todas ganharam asfalto, boa parte delas foi agraciada com água tratada, algumas com esgotos, os carros-de-boi deram lugar às caminhonetes, os cavalos e jegues foram substituídos pelas bicicletas e, em seguida, pelas motos. Mas aí surgiram também os acidentes de trânsito, os aleijumes (consta que mais de 60% dos deficientes físicos são vítimas de trânsito) e as mortes, todas elas precoces, obviamente.
As mortes e as seqüelas de trânsito formam números magistrais. Isso é estatística. Mas só é estatística enquanto envolve pessoas desconhecidas. Quando as vítimas, sejam elas mortas ou sobreviventes, são da nossa família, deixam de ser estatística: viram tragédia.
Muito há por se fazer no sentido de se resgatar esse quadro de gigantismo estatístico ou de tragédia humana. E tudo, no consenso dos estudiosos, dos técnicos e dos curiosos (feito eu), passa pela educação (ou reeducação) de
trânsito. “Se você mudar, o trânsito muda”, diz o slogan do DETRAN de Goiás. E só muda com práticas racionais de educação. Ou reeducação. Isto se pode fazer individualmente, com uma tomada de consciência (pois as leis existem, são acessíveis e precisam apenas de ser cumpridas), ou politicamente, com ações decididas dos órgãos e autoridades ligadas ao sistema, desde os gestores e controladores do trânsito até as escolas e os hospitais, destino indiscutível das vítimas.
Tudo isso por conta da nossa condição de animais racionais. Não fôssemos tão racionais, nosso instinto de sobrevivência dar-nos-ia a segurança que nos falta.
Luiz de Aquino é jornalista e escritor, membro da Academia Goiana de Letras. E-mail: poetaluizdeaquino@gmail.com

Tudo isso por conta da nossa condição de animais racionais. Não fôssemos tão racionais, nosso instinto de sobrevivência dar-nos-ia a segurança que nos falta.
Luiz de Aquino é jornalista e escritor, membro da Academia Goiana de Letras. E-mail: poetaluizdeaquino@gmail.com
3 comentários:
Ouvi certa vez que estatística é assim: seu vizinho tem dois carros, e você não tem nenhum carro. Então, estatisticamente, voce tem um carro. O mesmo pode-se dizer da frieza dos números acerca dos desastres, ocorrência comum em todas as partes, inclusive a zona rural.
A frase, capturada dessa leitura diz tudo: "Quando as vítimas, sejam elas mortas ou sobreviventes, são da nossa família, deixam de ser estatística: viram tragédia".
Desmontam coisas e pessoas. É uma desgraça que não se acaba.
Mara Narciso
Aqui no Recreio acontece uma coisa gozada: quanto mais "atrasada" a via, quanto menos acidentes letais. Quanto mais moderna, mais cadáveres.
O problema é o paradoxo usuário-avenida: ela pode ser moderna, mas ele ainda está no tempo das cavernas...
Para ser um bom leitor não basta ler corretamente, tem que ler o que esta escrito sobre as entrelinhas e também entepretar o que cada palavra nos leva refletir, e ler o que você escreve e tão maravilhoso que não precisa destes atributos, pois somente suas palavras fazem suas próprias intepretação. Parabéns.
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