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domingo, novembro 02, 2008

Paisagens e janelas


Quem mora em apartamento, mas já viveu em casa, sabe o quanto é difícil acostumar-se com a frieza dos edifícios. A gente vive numa proximidade física inversamente proporcional à proximidade daquilo que, quando se mora em casa, se chama vizinho. Imaginem! As pessoas a uma distância tão próxima que muitas vezes sabemos do que se passa em suas casas apenas por ouvir. Ouvimos suas músicas preferidas e as turras das crianças e adolescentes, a algaravia dos jovens, as discussões entre pais e mães, as broncas de sogras, as fofocas das empregadas; sentimos os cheiros de suas comidas, percebemos os olhares de paixão de suas filhas moças, a angústia pelas notas baixas, mas não somos vizinhos: somos, sim, solenes estranhos que se atrevem a cruzar com eles nos corredores e no saguão, bem como a lhes dar bons-dias nos elevadores.
Goiânia, até os anos 60, ainda era uma cidade de casas. Apartamento, aqui, era raridade. Aliás, ao entrevistar o advogado Wagner de Barros para o “Onde anda?” (uma série de entrevistas para o DM, em 1994, que acabou se tornando o meu livro Deu no jornal), ouvi dele que o primeiro apartamento da nova capital foi construído sob a batuta de seu pai, o gerente do Banco do Brasil Benedito Borges Barros. Tratava-se da residência do gerente na nova sede da agência local do banco, na esquina da Avenida Goiás com a Rua 1, no centro, prédio hoje ocupado pelo Banco do Estado. As pessoas da cidade, contou-me ele, visitavam a família para conhecer um apartamento. Isso, lá pelos anos 40.
A vida moderna é assim, infelizmente. É bom que Goiânia ainda conserve muito de casas, muito de bairros formados daquilo que os arquitetos e outros técnicos chamam de habitações individuais – as casas. Família morando em casa tem vizinho, e vizinho é quase um parente. Cora Coralina, já idosa, para escapar das constrangedoras festas pelo seu aniversário (20 de agosto), institui na sua Goiás Velho (tem gente que não gosta que se fale assim; eu gosto, tem um sabor de visita ao nosso Goiás bucólico) o Dia do Vizinho. Os vilaboenses gostam de festejar o aniversário da poeta maior trocando doces, salgados e quitandas por sobre os muros ou de porta em porta.
Apartamento obstrui a paisagem. Aqui em casa, no oitavo andar, desfrutávamos, há seis anos, da paisagem de 180º – a outra metade já nos era tomada. Aos poucos, outros prédios foram surgindo e em pouco nada nos restará senão a visão panorâmica de infindáveis janelas. Janelas indiscretas, como naquele antigo filme com James Stewart.
Na falta do verde e das ruas esquadrinhadas, divirto-me à janela vendo janelas. Vejo janelas pela sacada e pelas janelas de frente, e vejo sacadas e fundos de apartamentos pelas janelas do fundo. Vejo um vizinho sem camisa ao computador, possivelmente navegando pela Internet. Donas de casa na lida, filhas mocinhas ajudando, empregadas cometendo erros censuráveis porque a patroa trabalha fora...
O morador de um quinto andar, possível vivente sozinho, todo nu, prepara sua comida ao fogão, sem temer queimar o precioso ou inválido – mas de qualquer forma, sensível, e tão ao alcance das panelas.
No prédio em frente, ao pôr do sol, pelo menos duas moradoras praticam esporte em aparelhos domésticos – uma na bicicleta, outra na esteira.
Ao fundo, na sacada, um moço fuma, deixando evidente que respeita a família e não polui o ambiente com o excesso de fumaça. Quando acaba, pressiona o toco do cigarro em algo que imagino um cinzeiro; vai lá dentro e volta com uma menininha de pouco mais de um ano ao colo. Abraça-a com ternura, beija-lhe a fronte. Afaga-a como um menino envolve seu brinquedo preferido.
Salto a imaginação para o futuro e vejo a menininha de cabelos pretos já moça, chegando da faculdade, mãos dadas com um amigo ou namorado. O pai, cabelos brancos, sentado na sacada, fuma. Ele já terá descoberto que seu brinquedo da mocidade agora é gente grande também.




7 comentários:

Mara Narciso disse...

Luiz, é a minha segunda incursão num texto seu sobre janelas. Sei da importância delas no contexto dos "emparedados".

Aos seis anos de idade, e em 1961, mudei-me para um apartamento num dos raros prédios no centro de Montes Claros. Habitei nesses edifícios por intermináveis 26 anos.

Eu não via poesia alguma naquelas prisões, ainda bem que você vê. É mesmo desagradável estar tão perto de estranhos que nos incomodam e são por nós incomodados.

Felizmente, há 21 anos moro em casa.Faltam as janelas, mas a insegurança impera.

Anônimo disse...

Morei em apartamento em Campinas de Sâo Paulo durante um ano.Sentia angústia e vontade de ver quintal. Ainda bem que hoje moro em casa e da janela vejo meu quintal cheio de árvores,pássaros e galo (garnizé) cantando. Se tivesse que morar em apartamento cairia em tristeza profunda, porque sou roceira, adoro pisar em terra toda manhã.
Voce consegue driblar a situação transformar paredes e janelas em poesia.

Anônimo disse...

Luiz querido,

Lendo essa sua cronica,segui viagem junto . tao entretida como se eu estivesse la vendo as mulheres se exercitando, o homem nu, o pai fumando e depois carregando a filhinha, etc... Quando terminei vi que nao era real, mas sua cronica, que de tao bem escrita transportou-me junto a sua janela para de la ver tudo que voce descreveu.So um artista das palavras faz isto. Voce eh um artista. Gostei muito. beijocas da martha

Madalena Barranco disse...

Querido Luiz,

Sua crônica mostra que: quando há poesia tudo fica mais bonito! Eu gosto de morar em casa, mas... Confesso: eu adoro apartamento, ainda mais aqui do meu sétimo andar com vista para a serra da Cantareira, onde o vento uiva em noites gélidas e me traz o perfume da mata. Gosto de ver a cidade através da janela da zona norte paulistana... Beijos, com carinho.

Anônimo disse...

Preferido Poeta Luiz de Aquino,vç consegue com sua sensibilidade, prender-nos á leitura de seus textos e, como gosto de ler tudo que vç escreve...Já morei em apartamento e bem sei como é!...Ireci Maria

Anônimo disse...

Nostalgia...nasci e fui criada em apartamentos apesar dos meus 58 anos...casa, apenas nas férias quando viajava para Porto Alegre, para casa do vovô...uma farra, tanto quintal, tantas árvores e tantas "artes" sem testemunhos...mas confesso que atualmente, considero um herói quem vive em uma casa...tanta violencia e desrespeito, e na minha opinião, tão inseguras e de fácil acesso. Hoje, agradeço morar num edificio, com a segurança de porteiros 24 horas por dia, 2 portões com grades que são abertos alternadamente, e portarias quase que blindadas...Esta, infelizmente, é a imagem da modernidade, dos tempos atuais...uma lástima!!!
Carmem Amelia

Simplesmente Malu! disse...

Meu caro poeta, que prazer ler este seu texto com idéias super bem construídas.
Comigo ocorre o contrário. Somos moradores de um condomínio de casas na capital do Rio.
Onde moramos, temos o privilégio de contemplar micos e um bicho preguiça - que surgiram não sabemos de onde - trepados em árvores em nossa pracinha de lazer.
No entanto, a nossa primeira moradia - assim que nos casamos - foi num apartamento que tb possuía área de lazer e cujos moradores viviam como numa só família.
Hoje a situação se modificou, acredito que a frieza das pessoas esteja ligada aos seus cotidianos, pois eu mesma, não ponha a cara no portão há séculos e, dia desses, ouvi um vizinho me saudar dizendo:
-Olá, como vai? Pensei que estivesse doente não a vejo há meses!
Pra vc ver, nem eu tinha me tocado nisso.
Afinal, só saio de carro e entro em casa sem ver ninguém.
Será esse o preço que pagamos por conta do tal progresso?
Bjs.