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domingo, maio 09, 2021

As mães em nós

 

As mães em nós

 

Ela é a palavra mais linda
Que um dia o poeta escreveu
Ela é o tesouro que o pobre
Das mãos do Senhor recebeu.
(David Nasser e Herivelto Martins)

 

A quadra em epígrafe é da canção “Mamãe”, dos talentosos David Nasser e Herivelto Martins. Ouvi-a pela primeira vez em Niterói – era maio de 1956, justo o dia em que eu soube existir aquele segundo domingo voltado para festejarmos as mães. Acho que decorei música e letra de imediato, pois estava habituado a isso pelas cantorias frequentes em casa, em Caldas Novas, até dois meses antes...

“Quando o dei à luz, não foi só ele que nasceu, mas eu também, pois naquele momento eu nasci mãe”. Não sei que mãe foi essa que conceituou o primeiro parto de modo tão real, sincero e sentido – sem dúvida, uma poetisa (ou mulher poeta, como conceituamos desde que Cecília Meireles permitiu-se assim). Sei bem, de tanto ver, ouvir e sentir o quanto o amor de mãe é diferente, denso e essencial – por isso, eterno.

Habituei-me a publicar, uma ou duas vezes ao ano, um poema que produzi ainda a tempo de submetê-lo ao rigor do gosto de Da. Lilita (que sempre foi Elia Borgese mas, no meu registro de nascimento, o escrivão Melquíades, de Caldas Novas, distraído, acrescentou o H da grafia portuguesa, em lugar do original italiano).

Existirá, no mundo, até estes tempos pandêmicos, poeta que não tenha reverenciado a mãe em pelo menos uma peça? Eu menino, desde as primeiras cantigas aprendidas, cantava o que ela escolhia; meu pai solava a melodia, ela me ensinava os versos e a canção nascia para, algumas vezes, percorrer as ruas de terra batida de Caldas Novas em memoráveis serenatas. A partir do segundo semestre dos meus dez anos, minha devoção à mãe era formulada em cartas quinzenais ou semanais, desde a casa da avó Inês, em Marechal Hermes (Rio), onde morei até as vésperas dos 18 anos.

Henfil com Dona Maria


Essas cartas tinham o toque da relação familiar. Eram, pois, diferentes das que, nas décadas de 1970 e 80, o cartunista Henfil (Henrique Sousa Filho) publicava na última página da revista IstoÉ, como uma coluna, sob o título Cartas à Mãe. Um retratinho de Dona Maria ficava no alto, ao lado do título, e o cartunista ilustrava a missiva semanal, sempre curta, com seus tratos inconfundíveis, arrematando o texto de crítica política ferino, porém em linguagem de filho para mãe, como qualquer de nós sabe identificar – desde que filhos de mães amadas, já que, para os filhos, a melhor mãe do mundo tem o nosso mesmo endereço.

Henfil viveu pouco – faltavam 32 dias para completar 44 anos, em 4 de janeiro de 1988. Foi vitimado pela Aids, contraída em transfusão de sangue (ele e seus dois irmãos homens trouxeram na herança genética a hemofilia; os três morreram pela trágica doença que virou peste na década de 1980).

Outro artista que magistralmente reverenciou a própria mãe com sua arte deixou-nos nesta semana – o autor e ator comediante Paulo Gustavo Amaral Monteiro de Barros. Ele completaria 43 anos em outubro e vinha se destacando como humorista e comediante nesses espetáculos solitários tão em voga nos últimos anos, mas após uma criação sob o título “Minha mãe é uma peça”, o sucesso em palcos sugeriu a produção em mídia para a grande massa: um filme. E vieram, depois, duas novas versões, sempre com picos de bilheteria. 


Paulo Gustavo com Dona Dea 
  

Como Henfil, que contraiu Aids há 30 anos, Paulo Gustavo foi contaminado pelo Coronavírus, a praga deste tempo. E não conseguiu vencer a doença nos 50 dias em que lutou com força, assistido pelas mais recentes técnicas médicas. Dona Déa, sua mãe (que se tornou “Dona Hermínia”), certamente passa o pior de todos os seus Dias das Mães, confortada pela comoção nacional em torno do filho que sempre significou alegria e carinho para seus admiradores.

De minha parte de filho, sempre retribuí à minha mãe uma espécie de energia que, dizia meu pai, herdei dela – a persistência em defender meus pontos de vista e saber demonstrar opinião. Já na minha fase escritor, esbocei referências de amor e teimosia em meus textos em prosa. Ensaiei muitos poeminhas, de quadras a peças maiores, que rasguei por constatar que repetia outros poetas. Um dia, porém, consegui finalizar um poema personalista, de mim para ela, no modo que eu a sentia e sentia a nossa relação. Fiquei feliz quando ela levantou os olhos do papel e, com um beijo precedido de um olhar amoroso e diferente, os lábios se esticando num sorriso, ela puxou para si a minha cabeça e beijou-me a testa, naquele jeito incomparável.

Foi assim:

 

Mãe

 

Tristes não, nem saudosos. Alegres, talvez. 

Apenas certos de estender aos anos 

alcatifas de coradas flores.

 

Não cúmplices, mas pedaços 

de uma vida, a mesma, entrelaçados 

por fecundo sêmen, no estertor de legítimo gozo 

de humores a fluir com força: 

momento de evocar-me à luz.

 


À luz, à luz... como vim 

e vi-me feito à imagem 

de Deus, dizem os crentes; 

do Homem, é o que diz Deus.

 


Há, sim, o entendermo-nos sempre. 

Refazer das carnes após o amor de hormônios, 

multiplicar de genes, gestar com paciência, 

parir entre dores, odores, suores 

e as sempre lágrimas.

 


Deu-me o plasma, e o sorvi como a vida; 

deu-me formas, palavras, cores, paladares, 

música, dimensões, poesia 

e o sentir, 

que não se é poeta 

impunemente.

 


De risos, lágrimas, sucessos; 

e de tristes, felizes, esperanças; 

e de entes queridos ou distantes, 

a fé no verbo te eterniza em mim. 


*   *   *

Poeta Luiz de Aquino com a mamãe Lilita

 

16 comentários:

Unknown disse...

Os anos te fizeram poeta; em poesia, nos têm feito assíduos servos de um pensamento expresso em prosa e versos incontidos.
Muitas vezes sensuais com denotado pudor.
Lilita, ao seu lado, tornou presente um passado, que soube eu conviver. Faltam palavras, excede uma imensa saudade.

Rosamábile Marques de Jesus disse...

Maravilha o texto e a poesia! Obrigada...

Zanilda Freitas disse...

Parabéns Poeta! Texto, poema e foto perfeitos. Triste e inconcebível para uma mãe a perda um filho.

Luiz Fernando Martins disse...

Feito poeta, excede sentimentos em prosa e versos; como filho, caminha o desenho nostálgico de tantos anos felizes.
Sou servo de um cenário saudoso... em um canto de bar, ensaiando músicas das serenatas inesquecíveis pelas ruas de Caldas.
Segue poeta, me faz assíduo admirador. Versos intensos, poesias descomprometidas, desenhos sensuais com denotado pudor.
Lilita, compadre, inspiração denotada de um momento maduro, faz coro em canções, que eram nossas.
Ainda são nossas.
Bom final de semana.

Samuel disse...

Linda homenagem! Viva todas as mães!

Dra. Deuzirene disse...

Grande reflexão! Lembro sim da da. Lilita, sempre determinada!!! Foi também minha paciente... Saudades!

Vânia Bávaro disse...

Que lindo, poeta!
Esse é o meu primeiro dia das mães, sem a minha mãe 😢...
Você me emocionou!

Lídia Afonso disse...

Parabéns pelo belo texto e lindo poema.
Lídia Afonso

Adriano Curado disse...

Nesta postagem você se superou. Emocionante e poético.

BOI Affiune disse...

Adoro sua forma de escrever, de entrar num tema tão terno e tenso (pra quem como eu que não tem mais a mãe presente), essa forma de perpassar por locais de sua Mória e nos levar aos das nossas, obrigado!!!

Bete Jufer disse...

Texto muito bom.Bonita homenagem à sua mãe e a todas as mães em seu dia.

Bete Jufer disse...

Texto ótimo! Bela homenagem à sua mãe e a todas as mães em seu dia!

Bete França Jufer disse...

Texto ótimo! Bela homenagem à sua mãe e a todas as mães em seu dia!

Sônia Elizabeth disse...

Grande homenagem. Salve todas as mães!

Maria Helena Chein disse...

“As mães em nós”
Belo poema, onde o evocar a mãe é pensar na saudade mais real de que se tem notícia, sem sofrimento, antes, com uma alegria que une. O poeta e a mãe desbravaram o amor e seus doces significados. As lembranças intensas, o sentimento que persiste definem os versos construídos com arte e uma beleza singular.

Adélia Freitas disse...

Poeta, quanta sensibilidade! Quanto alcance consegue em minha alma materna. Tirou-me lágrimas este poema. Obrigada pelos belos versos.