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domingo, setembro 27, 2020

RONDÓ DE MENINO POBRE

 




Rondó de menino pobre 




Era caldo de manga madura
correndo amarelo no peito pelado.
Era bola de meia no meio da rua
ou a tarde de sol na beira do córrego
– era assim que eu era criança.


Eram tardes inteiras fechado em casa,
a cara no meio da meia-janela,
vendo passar devagar pela tarde
boiadas inteiras de bois curraleiros
– era assim que eu era criança. 


Era um tal de acordar muito cedo,
beber leite quente e pedir a bênção à mãe,
correr para a escola e dar a lição todinha de cor
ante a brabeza de Dona Vanda professora
– era assim que eu era criança.


E quando chegava o tempo das chuvas,
as ruas desnudas perdiam o pó e tudo era barro.
Eu fazia barquinhos de jornal e construía pontes
sobre os rios miúdos e torrentosos
– era assim que eu era criança.


Não havia televisão nem brinquedos eletrônicos,
astronauta era mentira de livro de ficção. 
Nos tempos de mais calor, eu caçava vaga-lumes
na escuridão das noites de minha infância
– era assim que eu era criança.


Um dia, cresci depressa.
Criei barba, falei grosso, troquei as calças curtas
por roupas de gente grande.
A escolinha se acabou e aprendi contas maiores.
A língua mudou de jeito, diziam “rau ariú, um beijo,
ai loviú” – virei rapaz duma vez.


Não mais o cascalho das ruas, não mais.
Não mais a lama das chuvas,
futebol no meio da rua, coalhada antes de dormir.
Não mais brincadeira de pique, estilingue,
finca ou carrinho; não mais banhos de córrego
nem medo de chinelo velho – chantagem feito                                                                                         [ameaça
dos pés para as mãos de mamãe.


Hoje, a barba grisalha e os filhos não mais crianças,
dói fundo no fundo do peito
a saudade do menino magricela
– era assim que eu era criança.

* * * * * *

Luiz de Aquino, escritor de prosa e verso, da Academia Goiana de Letras.

11 comentários:

Sandra Queiroz disse...

Luiz, este é de matar de saudade! Amei de ponta a ponta. Seus poemas me pegam em uma cadência e me levam como em enxurrada vermelha (a
que descia veloz do Setor Sul atrás da minha casa). Pensa que não passei por muito disso? Eu tinha dois irmãos mais velhos que eu. Brincava com eles no início da década de 50, na rua 26, ora empoierada, ora barrenta, mas sempre esburacada. E os lotes vagos? Eo Bosque dos Buritis? Tenho vontade de matar quem matou o bosque da minha infância.
Sandra Queiroz: Luiz, a poesia não é só palavra, é música com som e ritmo. Como musicistas a gente tem mais sentidos para sentir poesia. Às vezes, quando leio
um poema seu não paro só no prazer. Releio e me pergunto porque gosto? Sempre descubro o porquê e não jogo a culpa só na arte.

Bento Fleury disse...

Lindo e pungente rondó ❤️!

Miguel Jorge disse...

Oi, Luiz, vai em seu Rondó um pouco de nossa infância também, hoje tudo tão diferente e tão distante das delicias de chupar manga no pé, brincar na enxurrada, soltar pipa, comer melado com queijo... boas lembranças, parabéns!

Cláudio Godoy disse...

Em todos você foi bom, mas no "rondó", você foi melhor!!!

Eliane Aquino disse...

Este, mano, fez a gente voltar no tempo que era feliz... Saudades da nossa infância querida! É o poema mais lindo que você escreveu.
Bjs!

Nasr Chaul disse...

Boa! Assim éramos todos crianças que vivemos no interior goiano.
Era assim minha vida em Cristalina, Corumbaíba, Catalão... depois cresci também. Ficou sem graça.

Waldir Ferreira disse...

Doces lembranças você me trouxe de minha infância.
Ainda trago reminiscências da criança que habita em mim, do andar descalço na enxurrada... Dos cantos dos pássaros ao entardecer, do campinho de chão batido...
São tantas lembranças que me emocionaram ao ler seu poema.
👏👏👏👏🙏🙏

Carmem Gomes disse...

Poema que emociona a todos que passamos e tivemos uma infãncia livre para os folguedos! Chega dói, poeta !

edluiz disse...

Como é bom ser criança crescida.

Albertina de Aquino A. Araújo disse...

Bom dia! Obrigada. É bom iniciar o dia lendo belos poemas. Principalmente quando faz lembrar, o quanto bom, é ser criança.

Mara Narciso disse...

Temos essa mania de achar que a infancia foi maravilhosa. A saudade que temos, minha hipotese, é porque não tinhamos a opção da comparação. Os sentidos eram mais intensos. A infância consciente não dura uma década. Saudades.