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segunda-feira, novembro 23, 2020

Bernardo Elis, novamente.

 



Ao imortal caído

 

Falarei às rochas inertes das cachoeiras,
ao pó vermelho dos barrancos
e às águas borbulhantes dos rios inquietos.
Minha voz ferirá o tímpano das árvores
e ecoará no brilho efêmero da caliandra,
ouvirei histórias de lavadeiras, casos muitos
de soldados e putas, bênçãos de mães ingênuas,
prendas de mãos sofridas.

Lembrarei imagens rançosas
de sábados festivos e domingos preguiçosos.
A fuligem dos fogões da infância
forrará de silêncio uma lágrima teimosa
e farei um verso besta qualquer
que não fechará poema algum,
não abrirá a porta dos sonhos
nem me fará amigo dos poderosos
de cobre e de mando.

Serei farto também de odores saudosos,
como o das frutas maduras
preparadas para o tacho em que ferverá o doce
(alguma voz de pai, severa e grave, dirá de carinhos
mas não será para um filho distante, ausente ou triste). 


Haverá na lembrança o odor das fêmeas,
o odor químico das perfumarias e o mágico
dos frascos artísticos, mas haverá ainda
o odor onírico do desejo
em que um misto de doce e de acre
excita a carne do macho.

Noites tediosas das amplas cozinhas
à luz do borralho antigo:
Criadores de sonhos e imagens;
fazedores de casos contados em roda,
poetas não agem senão na essência inibida
dos viventes pensantes.

Tudo é forma de se construir saudades.

(Para Bernardo Élis, quando deixou de ser carne para se fazer encanto - dezembro, 1997).

  * * *

Luiz de Aquino, da Academia Goiana de Letras.

9 comentários:

Rosy Cardoso disse...

Poeta, poeta quantas figuras dançaram em minha mente, " a fuligem do borralho escondeu uma silenciosa lágrima.. "
Emudeço-me.

Rosy Cardoso disse...

Poeta, estou boquiaberta de tanta beleza.
As ricas figuras... O manejo com que elas conduzem a emoção!
Uauuuu!!!

Unknown disse...

Que sintonia! Obra,homenagem, estilo ,cronologia e conteúdos trabalhados. Seleção de palavras específicas. Uso de sutilezas entre o poeta e obra.... espetacular.

NILSON JAIME disse...

Foi publicado em livro, Primo?

Miguel Jorge disse...

Muito belo o seu poema, com referências à paisagem, as construções literárias de Bernardo Elis, sua imponente figura, o nosso Goiás e as nossas saudades, parabéns!

Maria Helena Chein disse...

Seu poema é muito bom! Belíssimo! As duas primeiras estrofes arrebataram-me, as seguintes me confirmaram que eu lia um texto de um grande poeta! Pura sensibilidade!

Luiz de Aquino disse...

RESPONDENDO A NILSON JAIME:

Sim, primo, está no livro "Sarau" - Goiânia, 2003, Edição do autor pela Editora Talento.

Nasr Chaul disse...

Maravilhoso. Acho que foi um dos poemas mais bonitos que já li de sua lavra.
Parabéns!

Rosilda Nunes disse...

Que sintonia! Obra, homenagem, estilo ,cronologia e conteúdos trabalhados. Seleção de palavras específicas. Uso de sutilezas entre o poeta e obra.... espetacular!